A arte de escrever

Escrever é uma arte. Aquele que usa a arte de escrever para produzir textos literários é chamado de escritor. No filme Ligados pelo amor (Stuck in love, 2012), de Josh Boone, percebemos que a arte de escrever, diferente do que muitos pensam, não é exercício arbitrário de colocar palavras num papel ou numa tela virtual, que outros, os leitores, por ventura, podem ler e gostar de alguma forma. Escrever é o exercício de descobrir-se no mundo a partir de suas sensações e sentimentos, isto é, de suas afecções no corpo e na alma.

Descobrir-se no mundo, isto é, escrever, ser escritor, nem sempre é fácil, muito menos para quem é jovem. Mas também não é para quem é adulto e se vê por um motivo ou outro perdido no mundo no qual se descobrira antes, mas no qual já não está mais presente. Leva-se tempo para se acostumar com as descobertas de si mesmo neste mundo e com o mundo mesmo que descobre e, em geral, as ações diante do mundo descoberto em relação a si mesmo depende de como cada um afectado, dos erros e acertos que se comete em cada momento de descoberta. Pois descobrir a si mesmo na arte de escrever não é um ato plenamente positivo e pode trazer muitas dores, bem como produzir muitas dores.

Escrever, neste sentido, é viver, algo que fazemos a cada momento de nossa vida, mas que, na arte de escrever, quer dizer sentir e pensar o mundo para descobrir-se nele. Pois é preciso viver antes de escrever. Ser leitor antes de usar a arte de escrever, dominar suas diversas formas de expressão dos afectos. Deixar-se descobrir pelas palavras que expressam os afectos de outros antes de se descobrir escrevendo suas próprias afecções.

Eis porque escrever nem sempre é fácil e muitos relutam e se angustiam quando têm que escrever algo literário. Não se trata de um recado a se dar a alguém. Não se trata de uma anotação para se lembrar depois. Não se trata de um papel ou uma tela virtual, caneta ou teclas e de alguém que agencia tudo isto ao escrever. Trata-se de cada um que se descobre no mundo e não quer se ver, não quer que o vejam, mesmo quando aquilo que escreve é apenas uma imaginação ou talvez mesmo porque é imaginação e não se quer dizer o que imagina, pois ainda se refere a si, é uma coisa sua.

Escrever é uma arte ainda mais difícil quando se percebe que não apenas nos descobrimos no mundo a partir dela, mas que também nos deixamos no mundo com ela. Que não apenas nos descobrimos no mundo, mas também que deixamos de ser o que éramos antes ou pensávamos que éramos e deixar a nós mesmos é difícil. Pois é deixar alguém com quem convivemos durante muito tempo e que é preciso que deixemos partir ao escrever à espera de um reencontro. É descobrir que não somos o mesmo no mundo e temos medo do que pode acontecer, pois não queremos sofrer. Não queremos que os outros nos façam sofrer quando nos descobrirem no que escrevemos, às vezes, diariamente. Pois se a vida de muitos é um livro aberto, a vida de um escritor é um diário secreto que ninguém ou apenas algumas pessoas podem ler.

Neste sentido, descobrir-se no mundo não é se expor nele, mostrar-se presente no mundo ao escrever, artisticamente. A literatura não é um teatro ou um cinema, e talvez nem o teatro e o cinema, como outras artes como a pintura e a fotografia, sejam uma exposição como se pensa, mas artes de escrever com o corpo, com movimentos, com cores, luzes e sombras. Tão pouco a arte de escrever é descrever a descoberta de si no mundo, uma exposição da exposição de si no mundo, escrever sobre como o mundo simplesmente lhe afecta.

Se descobrir-se no mundo, isto é, escrever, não é se expor no mundo é porque o escritor não é alguém que se expõe, mesmo quando parece estar totalmente exposto em seu corpo ou alma, como podemos perceber nos escritores Bill Borgens e seus filhos Samantha e Rusty, do filme Ligados pelo amor. Mais do que reclusos em algum lugar, no caso deles, numa praia, os escritores são reclusos em si mesmos, descobrindo-se aos poucos e apenas brevemente no mundo. O que não quer dizer que estejam sozinhos ou sejam solitários, pois descobrir-se no mundo é descobrir junto com outros e se unir a eles pelo amor, estar presos no amor a eles, como diz literalmente o título do filme em inglês, ainda que aqueles os quais se ama estejam distantes de si, se distanciem de si por algum momento ou eternamente.

O amor que une os escritores do filme, ou todos os escritores, não é o amor familiar, entre membros de uma família simplesmente. É o amor da arte de escrever, de descobrir-se no mundo com quem está perto a todo momento ou distante, do qual se sente falta, de quem se perdeu, muitas vezes si mesmo, perdido no mundo em busca de um lugar para ficar, um lar ainda que o antigo do qual partira antes. Pois, segundo a lei do eterno retorno do amor que rege a arte de escrever e o escritor, escrever é partir e voltar a si num descobrir-se no mundo ligado pelo amor eterno enquanto dure.

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