O crime não compensa

Minha mãe me disse uma vez que um ladrão rouba até nossos pensamentos. Por muito tempo, como filósofo, pensei nisso que ela me disse em busca de entender o significado de suas palavras que sempre me pareceram emblemáticas. Agora me detenho novamente nelas por conta do roubo da medalha de ouro que a jogadora de futebol do Brasil ganhou no Pan-americano.(veja aqui).

O fato é sui generis, apesar de ser mais um dentro das estatísticas de roubo atualmente no Brasil e do fato de pouco se fazer estrategicamente para impedi-lo, a não ser sugerir a cadeia para os bandidos. Sua excepcionalidade não está, por sua vez, no fato em si, mas no que ele contém de simbólico. Outros objetos foram roubados da jogadora e parentes, incluindo um carro de uma vizinha e podem ser recuperados em certa medida. Mas a medalha de ouro não. Uma réplica foi providenciada para ela, mas não será a mesma coisa como podemos imaginar.

Por trás do crime, há a lógica da sociedade capitalista em que vivemos cuja obtenção do lucro é o objetivo comum de todos, não importa os meios, por mais que existam regras quanto à obtenção deste lucro. Regras definidas em geral pelo Estado, mas que ele mesmo não consegue evitar burlar em proveito próprio, obtendo assim como todos os outros mais renda para si explorando o trabalho alheio. Ademais, é assim que o Estado e todos os políticos que são representantes do povo são sustentados, explorando o trabalho alheio como todo "bom" capitalista. Não seria de estranhar que um ladrão pensasse do mesmo modo, tentando obter proveito do trabalho do outro, cuja única diferença entre o capitalista e o ladrão é que aquele paga impostos e este não pela exploração do trabalho de outrem. Ou seja, aquele bem ou mal se preocupa um pouco com os outros, aqueles que não trabalham para si e dependem da solidariedade de estranhos intermediada pelo Estado.

Diante desta lógica perversa, é inegável que perdemos a dimensão do humano em que vemos os outros como iguais, com alegrias e sofrimentos e tantos outros sentimentos e pensemos apenas em nós mesmos, inclusive como cúmplices dos ladrões. Isto porque quando compramos um produto "pirata", uma palavra que esconde em si um simbolismo quase sempre "revolucionário" e mesmo lendário, no qual o pirata é visto como um Robin Hood ou um Lampião, alguém que, em certa medida, tira dos poderosos e dá aos pobres, nós nos aliamos aos ladrões, pois é isto que são, esperando que ele tire dos "poderosos", seus Iphones, Mac, Galaxys, e quantos objetos preciosos puder para nos dar a preços baixíssimos, completo ou em partes. E, assim, se a solidariedade capitalista e do Estado não é suficiente para compensar os anseios de todos, há quem reclame a sua parte mais diretamente roubando, e quanto menor melhor, pois passa pouco tempo na prisão.

Eis, por sua vez, o momento em que as célebres palavras de minha mãe retornam a mim com uma força que até então não tinha imaginado e com uma resposta impensável até então.Pois se os ladrões roubam nossos pensamentos, pensava eu antes que era porque simplesmente muitas vezes não sabemos como ele nos roubaram, mas é bem mais do que isto. O fato é que sempre sabemos como fomos roubado e há uma diferença entre roubo e furto. De certo modo, via as palavras de minha mãe sob o ponto de visto do furto, quando se tira algo de alguém sem violência à vítima. Longe de ser um erro, esta resposta demonstra o quão longe vai a lógica capitalista em nosso inconsciente, pois, mesmo quando há violência envolvida no momento em que nos tiram algo, geralmente, tendemos a minimizar o fato como um simples furto e não um roubo e nos sentirmos felizes por ainda estarmos vivos.

A questão é que por mais que minimizemos o roubo como um furto, ele não deixa de ser um roubo, isto é, não deixa de ser uma violência, e mesmo o furto é um roubo, porém, sem violência se diria, para a lei. Para a lei, não para as pessoas, que perdem algo, pois, seja roubo ou furto, é a lógica capitalista que impera sobre elas no sentido de que é sempre alguém tirando não simplesmente de sua posse algo, uma propriedade, mas tirando sua própria força de trabalho de um mês, anos ou a vida. Mais ainda, é alguém que imprime nas pessoas um poder soberano de vida e de morte sobre suas vidas com uma arma na cabeça e gritos ameaçadores e que, não bastando isto, ainda abuso de seu corpo maculando-o pelo resto da vida.

Disto resulta algo que não tinha pensado sobre as palavras de minha mãe, algo mais profundo e problemático do que pensamos, pois se desprezamos o roubo em detrimento da vida, desprezamos também a vida em detrimento do roubo e nos tornamos cúmplices deles toda vez que nos aproveitamos da oportunidade de comprar um bem roubado a um preço muito mais barato, pensamos. A questão é que não é tão barato assim, pois assim como os preços baratos de produtos no mercado capitalista geralmente são frutos da exploração do trabalho de muitas pessoas em países pobres cuja vida é desperdiçada em fábricas, também o objeto roubado mais barato é fruto da exploração do trabalho de pessoas geralmente pobres, que não tem objetos de luxo, mas de necessidade, que para se manterem dignas numa sociedade que a explora constantemente, tem no fetiche da mercadoria sua forma de se ver livre. E é neste ponto que o ladrão nos rouba o pensamento e a sociedade capitalista que estimula o lucro rouba nossa humanidade.

Quando compramos um objeto pirata, isto é, digamos melhor, roubado, não pensamos que este objeto foi conseguido por meio da violência de um roubo, ainda que furtivamente, de onde provém a palavra furto. Não pensamos nas sensações vividas pela pessoa que teve seu bem roubado, na situação vivenciada muitas vezes com uma arma apontada para si entre a vida e a morte. Não pensamos no quanto ela teve de trabalhar para conseguir aquilo sofrendo todos os dias para ir ao trabalho e, muitas vezes, não receber um salário que lhe permita ter dignidade para além do fetiche mercadológico. Não pensamos que aquela pessoa que está vendendo qualquer coisa roubada não é um simples vendedor, mas um investidor do crime e da violência contra nós mesmos como qualquer investidor capitalista que investe na exploração do trabalho e obtém lucros exorbitantes, como no caso de produtos importados a baixo custo no preço e alto custo de vida de uma pessoa pobre em algum país distante. Não pensamos que nós somos cúmplices de um crime, a mão armada ou não, mesmo que não tenhamos visto, lido ou mesmo que não queiramos saber, escondendo-nos na máxima egoísta capitalista do lucro a qualquer custo e de que se não foi conosco, então não importa.

Quando penso nas palavras de minha mãe, neste sentido, vejo o quanto ela conserva de verdade e quanto elas fazem ressoar aquilo que Aristóteles disse sobre o que é ser humano, isto é, o que é a essência ou substância do ser humano, no caso, pensar. O que, neste sentido, se os ladrões nos roubam até nossos pensamentos como minha mãe disse, eles roubam até aquilo que nos faz ser quem somos. E não pensar nisto é o primeiro princípio daqueles vivem a sociedade capitalista em toda sua plenitude, do que ela tem de "bom", o capitalista e o Estado com sua política e polícia, e o que tem de "mal", o ladrão, que explora o trabalho de todos na sociedade para vender para eles pela metade do preço, pois a outra metade é paga com sua humanidade roubada sem que ela perceba e quando percebe faz de conta que não foi a sua, pois é óbvio que o crime compensa e nunca é só para quem rouba, mas para quem vende e quem compra segundo a lógica da sociedade capitalista em que vivemos.

O caso da medalha da atleta do Pan-americano se é sui generis é porque o que foi roubado não foi o resultado de um trabalho tendo em vista o lucro, mas todo o esforço empreendido pelo ser humano em ser melhor, indo ao limite de seu corpo e pensamento, que muitas vezes se resume em um único momento da vida que não se repetirá nunca mais, como não se repetirá o momento em que ela recebeu a medalha com toda a alegria por ter conseguido isto juntamente com a alegria de todos que vivenciaram aquele momento. O ouro em questão é apenas um simbolismo da grandeza de sua conquista, como eram as folhas de louro representando o deus grego Apolo na cabeça do vencedores das Olimpíadas gregas, haja vista também que a medalha mesma não é totalmente de ouro, apenas uma parte dela. Se ele é o resultado de um trabalho, portanto, é do trabalho do ser humano em se tornar melhor e que nunca ninguém poderá obter como ela conseguiu naquele momento de sua vida, a não ser de outro modo.

Em cada roubo, enfim, somos suspeitos de um crime perfeito, que rouba até nossos pensamentos, mas, para ser sincero, crimes perfeitos não deixam suspeitos.

 
Pra ser sincero - Engenheiros do Hawaii





Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.