A pequena princesa


O que os olhos não veem o coração não sente. Desde 1943, este provérbio popular vem sido contradito por Antoine de Saint-Exupéry em sua obra-prima, O pequeno príncipe, pois não apenas se vê melhor quando se vê com o coração, e fechar os olhos não impede que se sinta tudo em sua volta, como o que é essencial é invisível aos olhos, e somente pelo coração que se "vê" melhor o essencial, o que é com os olhos fechados que se consegue melhor isto.

Traduzida para milhares de línguas e dialetos, O pequeno príncipe foi novamente traduzido em filme para o cinema. Muitos devem se arvorar para ir ao cinema como eu para assistir novamente aquela história de um pequeno príncipe que vivia no planeta B-612, que tinha uma rosa com a qual brigou e foi embora do planeta com pássaros que lhe faziam voar arrastando-o por meio de cordões... E muitos ficarão tristes e se perguntando talvez como algumas crianças no cinema: Cadê o pequeno príncipe? E muitos críticos fervorosos bradarão aos gritos: Traição! Traição! Traição! O filme não foi fiel ao livro! E tratarão logo de fazer valer o seu direito de marido ofendido da obra original detratando o filme e mesmo matando-o com suas palavras em defesa do direito sagrado de fidelidade ao original com o qual trocaram as alianças em matrimônio no momento da leitura e prometeram um ao outro viver felizes para sempre desde que ninguém se intrometesse entre ele e a obra para mudar uma vírgula de sua história.

Enfim, quem for ao cinema para ver a história d'O pequeno príncipe literalmente Ã© melhor ficar em casa, pois o essencial é invisível aos olhos e é isto que se vê no filme de Mark Osborne, O pequeno príncipe (2015), principalmente porque a personagem principal é uma pequena princesa. Sim, uma mulher, e só por isto deve ser motivo suficiente para machistas de plantão ficarem em casa, pois quem vai sair de casa para assistir filme de menininhas? Bem, eu, minha esposa e meu filho. Mas aquilo que seria motivo de afugentar homenzarrões deste filme é já o primeiro motivo para assisti-lo, pois os homens costumam recusar às mulheres tudo que eles querem para si, inclusive, a imaginação e a aventura em busca de si mesmo que vemos despertar nesta garotinha de forma sublime com a história d'O pequeno príncipe.

Em segundo lugar, estão ali todos os aspectos que fizeram d'O pequeno príncipe uma obra-prima infantil, juvenil, adulta, senil: solidão, isolamento, abandono, engano, morte... Todos narrados pelo olhar de uma criança que não sabe o que é a vida e aprende o que é tudo isto por uma das mais célebres e belas frases de todos os tempos: Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas. E que é senão o essencial que permeia todos estes aspectos negativos fazendo da solidão algo inexpressivo quando lembramos de alguém que cativamos ou nos cativou, do isolamento algo que não é ele propriamente também quando nossa memória é permeada de cativamentos, do abandono um motivo de encontro com aquilo que nos cativou, do engano um modo de chegar ao que nos cativou ainda que por meios tortuosos e a morte, senão, aquilo que nos faz responsável eternamente por aquilo que cativamos em vida.

É curioso notar como um livro com temas tão trágicos como estes possa ser aclamado por pais como eu e que desejam que seus filhos leiam e vejam esta história no cinema. Foi pensando nisto que li esta obra somente há poucos anos depois de ter assistido ao filme na década de 80 na televisão em sua primeira versão para o cinema, de 1974. Uma versão muito mais estranha para os dias de hoje e ao livro, pois não era pelos olhos de uma criança que a história era contada, mas pelos olhos de um adulto e que não era propriamente o aviador.  Um filme que muitos pais veriam hoje como indecente e estimulante à pedofilia com toda a sensualidade da rosa em seu despertar ensejando desejo de cuidados no pequeno príncipe com suas belas pernas. Mais ainda, um filme que estimularia a homossexualidade com aquela cobra travestida de homem ou homem travestido de cobra, com aquela dança "gay" tentando perverter o pobre pequeno príncipe. E uma raposa que se transformava em homem com olhos também sedutores que estavam mais para olhos de pedófilos do que para de alguém que não abandonara a sua infância. De bom, portanto, para muitos hoje em dia com seus olhos conservadores, apenas o aviador, aquele galã do cinema estadunidense.

Se há algo de maravilhoso também nesta nova tradução é que o filme nos faz ver a história pelos olhos de uma criança enquanto é criança, de uma pessoa adulta que deixou de ser criança e tem sua própria visão do que é ser criança e de um velho que nunca deixou de ser criança e que ensina isto a uma menininha sem olhar pedófilo. Algo que está presente no livro e que é reforçado por técnicas de animação e um universo imaginativo dos desenhos animados que fazem jus às ilustrações de Saint-Exupéry para sua obra que ganham neste filme contornos míticos de tão incríveis que se tornam. Nada, portanto, de adultos falando como a raposa, a serpente ou a rosa, mas estes se expressando em sua mudez característica, falando sem articular as palavras pela boca, pois, novamente, o essencial é invisível aos olhos, e as falas da rosa, da raposa e da serpente, são ouvidas pelo coração tanto quanto o essencial é visto. Basta um balançar da rosa, um serpentear da serpente, um gesto da raposa de pano para se entender tudo que querem dizer.

Porém, fazer das ilustrações de Saint-Exupéry animadas não seria nada novo. Já foi feito isto para a televisão outras duas vezes acrescentando histórias variadas, as quais já assisti com meu filho. E ainda que as técnicas sejam novas, isto por si só não faria desta nova tradução algo que merecesse ser visto, pois é a história do pequeno príncipe que se quer ver, e que vemos, felizmente, neste filme, com o pequeno príncipe literalmente, mas, principalmente, com a pequena princesa. O que, novamente, isto é maravilhoso, já que todos os aspectos ditos antes que fazem do livro impressionantes estão neste filme que conta a vida de uma garotinha que conhece o pequeno príncipe e vive uma aventura tão bela quanto a dele, além de aprender com ele, como ele aprendeu, o que é a vida, e que, principalmente, se o essencial é invisível aos olhos, é importante lembrar que o problema não é crescer, o problema é esquecer... Esquecer de ser criança, de esquecer tudo que lhe cativa e que é essencial para ser o que o que ser quando crescer, pois crescer não é deixar de ser criança, mas se tornar uma criança adulta, bem como uma criança velha.

E como se não bastasse isto tudo, o filme mostra algo que poucos pais querem ver hoje em seus filhos, isto é, que eles são crianças, fazendo com que eles se tornem adultos o mais breve possível e com todo um planejamento para isto, quer dizer, toda uma edipianização deles. Pais que querem que seus filhos sejam cada vez mais militarizados e obedeçam ordens preestabelecidas para eles seguirem, do acordar ao adormecer. Ordens que não lhes deixa nenhum espaço para interpretação, para tergiversações, para mudanças de perspectivas em sua vida, regrada a cada hora, cada minuto e cada segundo. Pais que são críticos severos que não querem que se mude uma vírgula do que planejaram para seus filhos que são suas obras originais. Pais que querem como educação dos filhos a prisão eterna dos desejos deles, da imaginação, da alegria e da felicidade fugaz de olhar para as estrelas um instante sequer em sua vida, pois isto é ruim para os negócios. Ou seja, a esquizofrenia enquanto desejo, imaginação, alegria e felicidade não regrada é ruim para o capitalismo que eles tanto valorizam e querem a todo custo reproduzir como pais responsáveis sem perceber que fazem o que Laio fez mandando seus filhos à morte e morte deles como pais consequentemente.

É maravilhoso, enfim, que um livro-filme infantil como este faça pensar tanto e assim são as obras-primas. Obras que se são primas não é porque permanecem do modo como são eternamente, mas porque fazem pensar numa multiplicidade de caminhos nos quais se pode percorrê-las. Obras que são abertas à traduções e não fechadas a estas, podendo serem lidas sempre de modos diferentes a cada repetição sem que se perca o essencial, pois, o essencial é invisível aos olhos e aqueles que, mesmo lendo o livro, não entenderam ainda isto, não devem assistir a este filme, que não é para crianças simplesmente, mas para adultos que deixaram ou ainda não deixaram de ser crianças, como eu e como meu filho que espero que continue criança como é hoje, não me importa se ele não entendeu o filme ou entenda o livro, mas que ele se lembre sempre do filme e do livro, principalmente da criança que é hoje como o meu pequeno príncipe e que muitas meninas possam vir a se tornar pequenas princesas como neste filme.

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