O direito à violência e a antropofagia nossa de cada dia
Do direito à palmada em crianças à defesa da pena de morte para criminosos, passando pelo direito de encarcerar jovens quanto menores possível em idade, pelo direito de agredir mulheres, homossexuais, negros, mendigos, criminosos e rivais de time no meio da rua, pelo direito a agredir verbal e corporalmente toda e qualquer pessoa que pense diferente de si e pelas recentes repressões violentas à manifestação de professores no Paraná, é sempre a violência que se manifesta no brasileiro como forma de resolver seus problemas sociais, políticos e econômicos, como se um culto antropofágico fosse o único meio, o único meio possível do brasileiro manifestar seu poder e o direito não fosse aquilo que acaba com a violência, mas aquilo que a perpetua indefinidamente, como diz Walter Benjamin.
Há algo de mítico em relação à violência no entendimento do homem comum brasileiro em se fazer justiça. Sob este aspecto, se há uma cordialidade em relação ao outro, ao estrangeiro, não há a mesma cordialidade no que diz respeito ao outro que partilha a mesma cidadania brasileira, mas é, de algum modo, diferente. O mito antropofágico em que os índios brasileiros comem seus rivais num ato de canibalismo não parece tão horrendo assim quando se percebe neste mito a necessidade de violentar o outro ao extremo para se obter um determinado poder. Algo comum para o brasileiro que pensa sempre em fazer justiça com as próprias mãos e que se institucionaliza de diversos modos no país através do brado sempre presente de "justiça", que não é simplesmente a da instauração de um "direito", mas de uma violência que justifique a violência anterior e que atravessa as diversas esferas públicas do país e se encarna cada vez mais na vida pública com políticos fazendo coro ao homem comum que, contra a violência, pede mais violência.
Se o policial é visto como o portador da violência sobremaneira, muitas vezes questionada, a violência expressa na ideia de que bandido bom é bandido morto é executada por ele com a garantia popular de que não vai ser, porém, questionado, a não ser pela família do morto que vai julgar na sua ação uma violência desmedida. Como diz Walter Benjamin, em seu texto célebre Para uma crítica da violência, de 1921, "O militarismo é a imposição do emprego universal da violência como meio para fins do Estado.(BENJAMIN, 2011, p. 131) E, diante disto, o emprego da violência por ele sempre será justificada quando ela for contra aquele que não reconhece os fins do Estado, ou os fins de direito estabelecido pelo Estado e com a instauração deste, entre os quais o direito à violência.
Porém, o que muitas pessoas não sabem em seu afã violento é que:
"o direito" [de violência] da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço. Por isso, a polícia intervém "por razões de segurança" em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; (...) E apesar de a polícia ter o mesmo aspecto em todos os lugares, até nos detalhes, não se pode deixar de reconhecer que o seu espírito é menos devastador quando, na monarquia absoluta, ela representa o poder do soberano, que reúne em si a plenitude do poder legislativo e executivo, do que em democracias, onde sua existência, não sustentada por nenhuma relação desse tipo, dá provas da maior deformação da violência que se possa conceber. (BENJAMIN, p. 136)A democracia, e principalmente neste caso, mais do que um governo em que prevalece a liberdade em suas diversas formas de expressão é também a que mais garante o direito à violência, e de toda violência como meio de garantir a liberdade defendida pela democracia. O contrato social hipotético e de fato que, modernamente, garantiu os poderes do cidadão contra o poder e a violência do rei, garantiu também o poder do Estado e sua violência contra eles mesmos na defesa de seus direitos enquanto indivíduos livres. O que isto não foi feito senão por meio da violência, pois, diz Benjamin (2011, p. 136): "Toda violência como meio é ou instauradora do direito ou mantenedora do direito. Se não pode reivindicar nenhum desses predicados, ela renuncia por si só a qualquer validade." (BENJAMIN, p. 136) O contrato social como medida tomada para conter a violência, como no Brasil, entre D. Pedro I e seu pai, ou entre os militares e o D. Pedro II, ou ainda, entre os democratas e os militares mais recentemente, é não apenas instaurado pela violência, mas apesar de sua aparência de "resolução de conflitos totalmente não-violenta", também mantém a violência de modo latente como única solução quando o contrato não é respeitado, já que:
uma resolução de conflitos totalmente não-violenta jamais pode desembocar num contrato de direito. Mesmo que este tenha sido firmado pelas partes contratantes de maneira pacífica, o contrato leva, em última instância, a uma possível violência. Pois o contrato dá a cada uma das partes o direito de recorrer à violência, de um modo ou de outro, contra a outra parte contratante, caso esta rompa o contrato. E não apenas isso: do mesmo modo como o seu desfecho, também a origem de qualquer contrato aponta para violência. (BENJAMIN, p. 136-37)O contrato exprime, de fato, o direito à violência tanto anterior como posterior a si. Ele é a institucionalização da violência pura e simplesmente como uma condição para qualquer relação de direito entre os indivíduos. É o contrato, por sua vez, que legitima a violência que instaura o direito e a violência contra aqueles que, a partir de então, quiserem instaurar um novo direito. É a consciência deste direito à violência instaurada pelo Estado com um contrato social que faz que cada cidadão tenha senão o direito de matar, o desejo latente disto quando percebe que o Estado rompe ele mesmo com o contrato, pois: "Quando se apaga a consciência da presença latente da violência numa instituição de direito, esta entra em decadência. (BENJAMIN, p. 137)
Em outras palavras, o que mantém o poder estabelecido no contrato pelas partes envolvidas é a consciência da violência latente em cada uma delas que pode se expor a qualquer momento e é, de certo modo, podemos dizer, o receio ou o medo desta violência se expor, se fazer presente na realidade que mantém de modo legítimo a violência do Estado instaurada em contrato social. Talvez se pense que este contrato social não exista ou nunca existiu entre os homens, mas que foi, como se diz, apenas uma hipótese ao pensamento daqueles que pensaram primeiramente o Estado moderno em sua forma absoluta ou democrática liberal. Contudo, este contrato faz parte da sociedade em que cada momento dela indivíduos das mais diversas condições se encontram a todo instante no cotidiano e não manifestam uma violência entre si. Ou ainda,
Encontra-se acordo não-violento em toda parte onde o cultivo do coração deu aos homens meios puros para o entendimento. (...) Cortesia do coração, inclinação, amor à paz, confiança, e o que mais poderia ser citado aqui, são seu pressuposto subjetivo. Sua aparição objetiva, entretanto, é determinada pela lei (cujo enorme alcance não pode ser discutido aqui) de que meios puros não são jamais soluções imediatas, mas sempre de soluções mediatas. (BENJAMIN, pp. 138-39)
Porém, como disse assertivamente Marx à respeito da Declaração dos direitos do homem e do cidadão instaurado pela Revolução Francesa, o Estado moderno não defende apenas a liberdade, igualdade e fraternidade entre os indivíduos em seu contrato social, mas também, e principalmente, a segurança de sua propriedade privada e é em relação à propriedade privada de bens materiais que a violência se instaura sobremaneira e que capitalismo e violência andam de mãos dadas, já que o primeiro incentiva cada vez mais a outra como meio de se obter lucro, quanto mais fácil melhor. Pois a mentalidade do capitalista é também a daquele que pratica a violência em relação aos bens materiais, a de obter do trabalho do outro aquilo que ele quer para si sem precisar trabalhar. E aqui encontramos uma antropofagia pura do criminoso quando é obtendo o que o outro tem de material que ele obtém um certo poder como o capitalista faz ao obter a força material do trabalhador ao máximo possível e instaura seu poder na sociedade através de diversos direitos como se fossem divinos, como o direito de pagar somente determinado salário, e, desta forma, violenta o trabalhador tanto quanto o criminoso, pois, "A instauração do direito é instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instauração divina de fins, o poder [Macht] é o princípio de toda instauração mítica do direito. (BENJAMIN, p. 148)
Se a violência garante a instauração do Estado moderno de direito, no caso do Brasil, o domínio de Portugal, e, posteriormente, dos militares por quase todo o século XX, com raras exceções, "o que é garantido pela violência instauradora do direito é o poder, muito mais do que qualquer ganho possível de posses." Um poder que não respeita as fronteiras que impedem que "o adversário" seja "simplesmente aniquilado, mas mesmo quando o vencedor dispõe de poder muito superior a ele, direitos lhes são concedidos. [E que] (...) para ambas as partes contratantes, [a fronteira] é a mesma linha que não pode ser transgredida. (BENJAMIN, p. 148-49)
Não há fronteiras para o homem antropofágico brasileiro, na medida em que a violência é seu meio de obter poder, tanto quanto o Estado moderno, pois faz parte do contrato social que quando este não é cumprido, ele deve usar da violência para garantir mesmo sua liberdade. Porém, sua "violência mítica é violência sangrenta exercida, em favor próprio, contra a mera vida" e que se estende quase sempre, cada vez mais hoje em dia, como "violência divina e pura [que] se exerce contra toda a vida, em favor do vivente", como pensa o terrorista em sua intelectualidade tacanha quando diz "'Se eu não matar, jamais estabelecerei o reino universal [divino] da justiça'" (HILLER apud BENJAMIN, 2011, p. 153)
Seja a partir do mito antropofágico, do direito moderno, ou do poder divino, o brasileiro sempre justifica a violência como uma necessidade e um direito, seja para se obter bens materiais, no caso do criminoso por falta mesma destes bens, para se viver em paz num Estado de direito contra os criminosos mesmos, ou ainda, quando faz da sua violência uma violência divina, isto é, justificada por Deus representado por ele em sua violência: "aniquiladora do direito", como querem os defensores de intervenção militar recorrentemente para qualquer situação da vida cotidiana, com a tortura e morte para todos que não se "orgulham" do país em que vivem; que "aniquila limites" como faz o militar que não reconhece criminoso ou cidadão de direitos ou os dois simultaneamente no que diz respeito aos direitos humanos do criminoso; que "golpeia" indiscriminadamente sem nenhuma ameaça sob um direito que ela pressupõe pleno a si por que Deus assim a autoriza ou a lei vista de modo divino; e que é divina, justificada de modo divino, em nome de Deus, quando "é letal de maneira não-sagrenta", quando o brasileiro defende cada vez mais hoje em dia uma pena de morte como a expressão mais pura da violência divina.
O que contra tudo isto, contra todo o direito à violência a que se arroga o brasileiro, é preciso senão partir de uma crítica da violência de modo filosófico analisando a história dela fazendo-se perceber de modo crítico, diferenciado e decisivo que "toda violência mantenedora do direito acaba, por si mesma, através da repressão das contraviolências inimigas, enfraquecendo indiretamente, no decorrer do tempo, a violência instauradora do direito, por ela representada. (BENJAMIN, 2011, p. 155) Em outras palavras, não é aumentando nosso direito à violência às "contraviolências inimigas" como fez o governador Beto Richa (PSDB) do Paraná e todos aqueles que defendem o poder do Estado como ele com base exclusivamente na violência indiscriminada que instauraremos um Estado democrático de direito brasileiro. E que somente o diálogo, isto é, a "compreensão mútua" a partir da linguagem é o único meio puro da não-violência, a única "técnica de civilidade" na qual "é possível um acordo não-violento como a exclusão, por princípio, da violência". (BENJAMIN, 2011, p. 139)
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