Uma tragédia anunciada
A charge ao lado já é velha. Foi tema de várias discussões entre educadores sobre a mudança de comportamento dos pais em relação a educação dos seus filhos, inclusive no concurso que participei para ser professor, justamente no ano de 2009. Porém, mais do que problemas educacionais, ela demonstra a tragédia anunciada de uma nação num determinado tempo, seja qual for a nação, seja qual for o tempo, quando a educação não se faz uma prioridade seja para governo, seja para escolas, seja para pais, muito menos para os mais interessados hoje em dia, os próprios estudantes, aqueles que necessitarão delas num futuro próximo.
Em sua obra-prima sobre a educação, Sobre a pedagogia, escrita entre os anos de 1776-1787, o filósofo alemão Immanuel Kant escreveu já na primeira frase dela aquela que seria a máxima de sua pedagogia que deveria orientar toda a pedagogia moderna: "O homem é a única criatura que precisa ser educada." Talvez muitos já soubessem disso, pois é fácil observar a natureza e perceber como ele percebeu que esta provêm todos os animais não-humanos de condições que lhes possibilitem conseguir tudo de que precisam em relação a ela em condições obviamente favoráveis. Porém, Kant percebeu algo além disso e que diz respeito à charge e ao problema da educação atual, que a educação é um dever ao "homem", motivo pelo qual ele colocou a disciplina desde suas primeiras anotações, já que o livro foi feito de anotações de suas aulas na Universidade de Königsberg.
É fácil perceber que a educação é um dever no lado esquerdo da charge, quando pais e professores se sobrepõem ao estudante com todo o peso da sociedade em suas costas. Contudo, é bom observar que o dever do ponto de vista pedagógico para Kant não deveria nunca ser o de humilhar ou envergonhar uma criança em demasia e que, neste sentido, a disciplina não era a sobreposição de uma autoridade à criança não lhe reservando nenhum direito senão o de submeter. Assim, se este lado esquerdo da charge demonstra um dever, este deve ser percebido de uma forma diferente do que temos hoje em nosso preconceito com a educação dita tradicional na qual a escola e toda a sociedade se tornaram uma grande burocracia estatal ou capitalista com todas as gerências e ingerências comuns aos burocratas em seu mesquinho poder tão bem analisado por Max Weber.
Quando Kant diz que a educação é um dever e começa pela disciplina, e percebemos isto no lado esquerdo da charge, a questão não é submeter as crianças ao constrangimento e repressão constantes de modo que ela reconheça a autoridade do "pai" ou do "professor" fazendo assim nascer toda a problemática tão familiar a Freud. Trata-se de fazê-la perceber aquilo mesmo que ele disse no início, que o "homem" precisa ser educado, ou ainda, mais atualmente, que o "homem" precisa se educar, do contrário, ele não vai sobreviver na sociedade como os animais não sobreviveriam na natureza se fizessem o que o homem faz. Neste sentido, o exemplo que Kant dá já para explicar a sua máxima primeira ilumina bem esta questão:
O lado direito da charge é obviamente um oposto de tudo isto, inclusive da pedagogia kantiana. Ela não demonstra uma necessidade ou um dever de se educar, mas o direito tão somente da educação, este que todos reconhecem hoje em dia e se sentem no dever de cobrá-lo do professor, seja pais, seja escola, sejam governos. A coação do "professor" pelos pais e a arrogância e prepotência do "filho/estudante" ao ver isto é comum a muitos professores hoje em dia, mas a questão mais problemática em relação a isto não é que o professor seja desvalorizado simplesmente como muitos veem, remetendo esta charge a um simples problema de valorização docente, principalmente de salários a que sempre se remete a valorização do professor. Não é o professor que está sendo desvalorizado, é a educação com tudo que ela implica e que é representada pelo professor, mais ainda, no conhecimento que ele adquiriu durante anos para poder ter condições de ensinar, enfim, na autorregulação que ele teve que ter em sua vida de suas forças para poder obter um conhecimento que lhe permitisse sobreviver à sociedade.
Sob este aspecto é que a tragédia se anuncia. Desvalorizada a educação representada pelo professor não é difícil perceber as consequências disto. Édipo agora não precisa ser mais desculpado por ter afrontado a sociedade, desrespeitado o pai, molestado a mãe e se tornado rei às custas disso, mesmo que sem saber. O fato mesmo dele não saber, isto é, ser desprovido de saber ou de consciência dos seus atos, porque não sabia quem eram seus pais verdadeiros, o desculpou. A sociedade anti-edipiana que se tem hoje faz as crianças como a da charge esquerda não terem o dever de se educar, mesmo que se diga o contrário, mesmo que se defenda justamente o contrário, a todo instante e por vários meios possíveis. A educação não é um dever para elas, é um direito de ter boas notas. São estas, por sinal, o dever. O conhecimento é o que menos importa.
Vê-se bem a que ponto chegamos em nossa anti-disciplina, mais geralmente conhecida como liberdade. Rompemos as clausuras da família, da escola, dos manicômios e dos presídios, em alguns casos corretamente, para que se melhor viva na sociedade, mas nenhuma sociedade se mantém sem educação e esta não se obtém sem disciplina, mesmo que se eduque sozinho. Eis o que a máxima kantiana nos orienta e vemos se propagar em várias menções de sucesso educacional em várias áreas do saber. Ninguém aprende sem que se regule e se quer chegar a algum fim.
No caso, de Kant não era um fim qualquer o que ele queria que víssemos a partir da educação, posto que era a humanidade que estava em questão para ele. Esta humanidade que se diz hoje em dia perdida já em tenra infância resultando numa preocupação crescente de governos em criminalizá-la e construir presídios para ela já que a educação deixou de ser um dever para aqueles que a querem como direito: estudantes, pais, escolas e governos, pois, obviamente, assim sai mais barato à sociedade burocrática estatal capitalista. Posto que se educar, isto é, perceber a necessidade de se educar e, hoje em dia, se educar cada vez mais se algo extremamente caro haja vista a escassez justamente da educação. Ou seja, a carência de educação das pessoas faz justamente crescer o preço dela ou ainda crescer a procura dela nos lugares justamente onde a educação não é um direito, mas um dever, nas escolas particulares nas quais os pais reconhecem a educação como algo a ser conquistado e não simplesmente dado.
Eis, pois a tragédia em curso atualmente: o que os pais estão fazendo no lado direito da charge é educar seus filhos a não estudar, que o "filho" não deve estudar, pois seus pais não vão cobrar dele, mas do professor, que o medo do professor em ver pais deste jeito à sua frente faz com que eles frequentemente melhorem as notas dos estudantes com trabalhos sem nenhuma demonstração de conhecimento, que a sociedade em geral deve fazer o "professor" se envergonhar por ter aprendido algo para ser um ser humano melhor dotado de conhecimento, se culpando a todo instante pelo que fez, se educar, e o que faz, educar.
As consequências desta tragédia estão estampadas nos jornais todos os dias e acometem todas as classes sociais, pois a educação não distingue classe social, apenas seres humanos. A educação se faz entre gerações, diz Kant, pois uma geração educa a outra. Remeter o problema da educação a questão financeira é justamente negar que antes de ser um "indivíduo" inserido dentro de uma sociedade "capitalista", ele é um ser humano que pode melhorar. Mas para ser um humano não basta ter ou não ter dinheiro, ou boas ações, é preciso se educar e é nisto que consiste o fim máximo da educação segundo Kant, tornarmo-nos seres humanos para quem sabe, um dia, sermos um pouco parecido com os animais, totalmente integrados e em equilíbrio com a natureza sem prejudicarmos a nós mesmos e aos outros com nossa força arbitrariamente.
Disciplinados, por fim, mas não do modo como se entende atualmente a disciplina do ponto de vista do controle, posto que o fim não é a repressão e opressão do outro por qualquer motivo numa tentativa de controlá-lo, e sim, entendida como a autorregulação necessária à própria vida para que ela seja melhor vivida, posto que, do contrário, de modo trágico alhures, o excesso de demonstração de poder como se vê atualmente desde a tenra idade como no lado direito da charge só faz construir cadeias cada vez mais poderosas sobre o homem e esquecer que "Disciplina é liberdade.", como cantou Renato Russo em sua música Há tempos fazendo ressoar a máxima de Kant em alto e bom tom para quem quisesse ouvir, mesmo sem entender, preferindo impor contra ela seu brado retumbante de criança recém-nascida, totalmente despreocupada com o mundo que a rodeia, apesar de não ter culpa de nada, já que ninguém a educou ainda, mas deverá, senão ela vai pra rua.
Em sua obra-prima sobre a educação, Sobre a pedagogia, escrita entre os anos de 1776-1787, o filósofo alemão Immanuel Kant escreveu já na primeira frase dela aquela que seria a máxima de sua pedagogia que deveria orientar toda a pedagogia moderna: "O homem é a única criatura que precisa ser educada." Talvez muitos já soubessem disso, pois é fácil observar a natureza e perceber como ele percebeu que esta provêm todos os animais não-humanos de condições que lhes possibilitem conseguir tudo de que precisam em relação a ela em condições obviamente favoráveis. Porém, Kant percebeu algo além disso e que diz respeito à charge e ao problema da educação atual, que a educação é um dever ao "homem", motivo pelo qual ele colocou a disciplina desde suas primeiras anotações, já que o livro foi feito de anotações de suas aulas na Universidade de Königsberg.
É fácil perceber que a educação é um dever no lado esquerdo da charge, quando pais e professores se sobrepõem ao estudante com todo o peso da sociedade em suas costas. Contudo, é bom observar que o dever do ponto de vista pedagógico para Kant não deveria nunca ser o de humilhar ou envergonhar uma criança em demasia e que, neste sentido, a disciplina não era a sobreposição de uma autoridade à criança não lhe reservando nenhum direito senão o de submeter. Assim, se este lado esquerdo da charge demonstra um dever, este deve ser percebido de uma forma diferente do que temos hoje em nosso preconceito com a educação dita tradicional na qual a escola e toda a sociedade se tornaram uma grande burocracia estatal ou capitalista com todas as gerências e ingerências comuns aos burocratas em seu mesquinho poder tão bem analisado por Max Weber.
Quando Kant diz que a educação é um dever e começa pela disciplina, e percebemos isto no lado esquerdo da charge, a questão não é submeter as crianças ao constrangimento e repressão constantes de modo que ela reconheça a autoridade do "pai" ou do "professor" fazendo assim nascer toda a problemática tão familiar a Freud. Trata-se de fazê-la perceber aquilo mesmo que ele disse no início, que o "homem" precisa ser educado, ou ainda, mais atualmente, que o "homem" precisa se educar, do contrário, ele não vai sobreviver na sociedade como os animais não sobreviveriam na natureza se fizessem o que o homem faz. Neste sentido, o exemplo que Kant dá já para explicar a sua máxima primeira ilumina bem esta questão:
Se, por exemplo, um animal, ao vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebês, tornar-se-ia com certeza presa dos lobos e de outros animais selvagens atraídos pelos seus gritos. (p.11)Mas há nisto, algo mais surpreendente do que simplesmente um dom da natureza dado aos animais e nos retirado, há uma perfeita integração entre eles e a natureza, na medida em que diz também ele, um pouco antes, de modo emblemático:
Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de tal maneira que não se prejudicam a si mesmos. (...) A maior parte dos animais requer nutrição, mas não requer cuidados. (p. 11. Os primeiros grifos são meus.)Desde quando nasce o homem assim como todos os animais demonstra sua força, mas diferente deles como diz Kant, ele não sabe regular sua força, excedendo-se muitas vezes nela e prejudicando a si mesmo. O grito da criança ao nascer demonstra o quanto o homem não sabe se regular como os animais na natureza, o quanto, portanto, ele não tem cuidado consigo mesmo e, por isso, muitas vezes se prejudica. Se o homem precisa se educar, isto não quer dizer que alguém que vá educá-lo deva se sobrepor a ele, mas que ele mesmo deve aprender a se sobrepor a si, regular sua força para que ela não o prejudique. A força de um "pai" ou de um "professor" não está em sobrepor-se em força à criança ou "aluno", mas em saber justamente se autorregular para que a criança/estudante perceba desde cedo o que deve fazer. É o caso da primeira charge, de certo modo, feito estas ponderações.
O lado direito da charge é obviamente um oposto de tudo isto, inclusive da pedagogia kantiana. Ela não demonstra uma necessidade ou um dever de se educar, mas o direito tão somente da educação, este que todos reconhecem hoje em dia e se sentem no dever de cobrá-lo do professor, seja pais, seja escola, sejam governos. A coação do "professor" pelos pais e a arrogância e prepotência do "filho/estudante" ao ver isto é comum a muitos professores hoje em dia, mas a questão mais problemática em relação a isto não é que o professor seja desvalorizado simplesmente como muitos veem, remetendo esta charge a um simples problema de valorização docente, principalmente de salários a que sempre se remete a valorização do professor. Não é o professor que está sendo desvalorizado, é a educação com tudo que ela implica e que é representada pelo professor, mais ainda, no conhecimento que ele adquiriu durante anos para poder ter condições de ensinar, enfim, na autorregulação que ele teve que ter em sua vida de suas forças para poder obter um conhecimento que lhe permitisse sobreviver à sociedade.
Sob este aspecto é que a tragédia se anuncia. Desvalorizada a educação representada pelo professor não é difícil perceber as consequências disto. Édipo agora não precisa ser mais desculpado por ter afrontado a sociedade, desrespeitado o pai, molestado a mãe e se tornado rei às custas disso, mesmo que sem saber. O fato mesmo dele não saber, isto é, ser desprovido de saber ou de consciência dos seus atos, porque não sabia quem eram seus pais verdadeiros, o desculpou. A sociedade anti-edipiana que se tem hoje faz as crianças como a da charge esquerda não terem o dever de se educar, mesmo que se diga o contrário, mesmo que se defenda justamente o contrário, a todo instante e por vários meios possíveis. A educação não é um dever para elas, é um direito de ter boas notas. São estas, por sinal, o dever. O conhecimento é o que menos importa.
Vê-se bem a que ponto chegamos em nossa anti-disciplina, mais geralmente conhecida como liberdade. Rompemos as clausuras da família, da escola, dos manicômios e dos presídios, em alguns casos corretamente, para que se melhor viva na sociedade, mas nenhuma sociedade se mantém sem educação e esta não se obtém sem disciplina, mesmo que se eduque sozinho. Eis o que a máxima kantiana nos orienta e vemos se propagar em várias menções de sucesso educacional em várias áreas do saber. Ninguém aprende sem que se regule e se quer chegar a algum fim.
No caso, de Kant não era um fim qualquer o que ele queria que víssemos a partir da educação, posto que era a humanidade que estava em questão para ele. Esta humanidade que se diz hoje em dia perdida já em tenra infância resultando numa preocupação crescente de governos em criminalizá-la e construir presídios para ela já que a educação deixou de ser um dever para aqueles que a querem como direito: estudantes, pais, escolas e governos, pois, obviamente, assim sai mais barato à sociedade burocrática estatal capitalista. Posto que se educar, isto é, perceber a necessidade de se educar e, hoje em dia, se educar cada vez mais se algo extremamente caro haja vista a escassez justamente da educação. Ou seja, a carência de educação das pessoas faz justamente crescer o preço dela ou ainda crescer a procura dela nos lugares justamente onde a educação não é um direito, mas um dever, nas escolas particulares nas quais os pais reconhecem a educação como algo a ser conquistado e não simplesmente dado.
Eis, pois a tragédia em curso atualmente: o que os pais estão fazendo no lado direito da charge é educar seus filhos a não estudar, que o "filho" não deve estudar, pois seus pais não vão cobrar dele, mas do professor, que o medo do professor em ver pais deste jeito à sua frente faz com que eles frequentemente melhorem as notas dos estudantes com trabalhos sem nenhuma demonstração de conhecimento, que a sociedade em geral deve fazer o "professor" se envergonhar por ter aprendido algo para ser um ser humano melhor dotado de conhecimento, se culpando a todo instante pelo que fez, se educar, e o que faz, educar.
As consequências desta tragédia estão estampadas nos jornais todos os dias e acometem todas as classes sociais, pois a educação não distingue classe social, apenas seres humanos. A educação se faz entre gerações, diz Kant, pois uma geração educa a outra. Remeter o problema da educação a questão financeira é justamente negar que antes de ser um "indivíduo" inserido dentro de uma sociedade "capitalista", ele é um ser humano que pode melhorar. Mas para ser um humano não basta ter ou não ter dinheiro, ou boas ações, é preciso se educar e é nisto que consiste o fim máximo da educação segundo Kant, tornarmo-nos seres humanos para quem sabe, um dia, sermos um pouco parecido com os animais, totalmente integrados e em equilíbrio com a natureza sem prejudicarmos a nós mesmos e aos outros com nossa força arbitrariamente.
Disciplinados, por fim, mas não do modo como se entende atualmente a disciplina do ponto de vista do controle, posto que o fim não é a repressão e opressão do outro por qualquer motivo numa tentativa de controlá-lo, e sim, entendida como a autorregulação necessária à própria vida para que ela seja melhor vivida, posto que, do contrário, de modo trágico alhures, o excesso de demonstração de poder como se vê atualmente desde a tenra idade como no lado direito da charge só faz construir cadeias cada vez mais poderosas sobre o homem e esquecer que "Disciplina é liberdade.", como cantou Renato Russo em sua música Há tempos fazendo ressoar a máxima de Kant em alto e bom tom para quem quisesse ouvir, mesmo sem entender, preferindo impor contra ela seu brado retumbante de criança recém-nascida, totalmente despreocupada com o mundo que a rodeia, apesar de não ter culpa de nada, já que ninguém a educou ainda, mas deverá, senão ela vai pra rua.
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