Revoltas e revoluções: sobre as manifestações recentes no Brasil

Há uma grande diferença entre revoltas e revoluções. Basta assistir aos filmes Relatos Selvagens (2014), de Damión Szifron, Gandhi (1982), de Richard Attenborough e Selma - Uma luta pela igualdade (2015), três filmes que coincidentemente assisti nesta semana e que fazem refletir muito sobre as recentes manifestações no Brasil.

Uma pergunta que poderíamos fazer em relação ao filme Relatos Selvagens é até que ponto estes relatos são selvagens. Por selvagens é comum entendermos uma pessoa que não é culta, uma definição moderna muito aplicada aos recém-descobertos povos ameríndios desde 1500 e que não supõe, portanto, nenhum aspecto da vida moderna e todos os seus traumas. Mas não é isto que vemos neste filme o qual talvez muitos se apressem em definir suas histórias como absurdas sem levar em conta o grau de civilidade delas. Sim, civilidades, pois, ao contrário do título do "filme" - chame-mo-lo assim por se reunirem numa mesma película - , as histórias apresentadas não são sobre pessoas incultas, desprovidas dos costumes modernos, e sim, de pessoas que estão até o pescoço envolvidas em toda a modernidade civilizada na qual a sociedade se insere hoje em dia.

Cada história é um relato da civilização em tudo que ela assombra a cada dia. Uma civilização que Thomas Hobbes quis diferenciar enquanto sociedade de um estado de natureza em que todos lutavam contra todos, mas que é senão a expressão da sociedade atual como este estado de natureza característico podendo-se dizer que todos que dela participam são "selvagens-civilizados". Pois é assim que a sociedade civilizada ocidental se apresenta atualmente, como o estado de natureza hobbesiano em que as revoltas individuais selvagens estão presente em todos os lugares e todos lutam contra todos sob o olhar sonolento de Leviatã, o Estado, em seu sono profundo.

Algumas vezes, porém, as revoltas individuais se contêm e por um breve instante na história o acordo tácito que Hobbes pensava entre todos os cidadãos se faz presente como um elã social a envolver a todos de uma só vez como se pode ver nos filmes Gandhi e Selma. Um momento em que o anjo da história de que nos fala Walter Benjamin acorda os mortos, junta os fragmentos e volta-se para o futuro, levado pela tempestade do progresso a bater em suas asas. Um progresso que não é o da ciência e da tecnologia, mas do ser humano quando acontece uma revolução humana que não se vê e não se ouve, mas se sente pairar sobre todos os civilizados.

No filme Gandhi vemos isto acontecer por duas vezes, quando o jejum de Gandhi se transforma no jejum de vingança de todos os cristãos, hindus e muçulmanos e no abandono total do conflito entre eles pelo ideal da não-violência, quando a revolta individual de cada um silencia por um momento em meio a todos os gritos de lamentos. Algo inimaginável em meio a tantas agruras que os acometem, principalmente os hindus e muçulmanos que são abatidos como moscas pelas forças europeias cristãs e sua civilidade, em uma das vezes, morrendo 1500 de uma só vez entre homens, mulheres e crianças como lição para que eles não se manifestem em oposição ao domínio europeu.

No filme Selma uma mesma renúncia ao conflito acontece por parte dos negros a partir do ideal de não-violência em relação aos brancos e a revolta silencia também em proveito de uma revolução. Dessa vez, não é a liberdade de um país que se almeja, como em Gandhi, mas a liberdade de fazer parte de um país livre de modo livre também pelo voto, pois mesmo sendo livres nos Estados Unidos da América, os negros não viviam deste modo. A liberdade lhes era tolhida, já que assim como na África do Sul e na Índia inglesas, os brancos, cristãos e civilizados em suas armas não toleravam a selvageria dos negros, uma raça inferior, como todas as raças não-brancas segundo a mitologia branca ocidental europeia.

Difícil descrever a dor aos assistir as dores de negros, hindus e muçulmanos sob as mãos armadas dos ímpios cristãos brancos ocidentais nestes dois filmes e mais difícil ainda aceitá-la como eles a aceitaram, silenciando em seus corpos toda e qualquer violência, não se tornando mais um "selvagem-civilizado" no outro filme.

Difícil mais ainda não pensar como as manifestações recentes no Brasil estão muito mais próximas das revoltas dos selvagens-civilizados do que da revolução humana que Gandhi e Martin Luther King promoveram em relação aos brancos cristãos selvagens-civilizados. Pois nenhuma revolução humana é possível a partir de selvagens-civilizados, brancos ou não, que Hobbes dizia viver no estado de natureza, mas viviam na própria sociedade, e tão pouco a tempestade produzida por estas manifestações a fazer bater as asas do anjo da história é a do progresso humano. Pelo contrário, é a tempestade do inumano, a destruir tudo e fazer o anjo da história decair melancólico, espreitando o horizonte inerte sem saber o que fazer entre os selvagens-civilizados da sociedade e suas armas em punho famintos de dor, violência e regozijo.

Difícil, sobretudo, olhar pra estas manifestações e não perceber o quanto as pessoas clamam por um futuro melhor para o país e sua consciência política não chega nem perto da alcançada por hindus, muçulmanos e negros a partir de Gandhi e Martin Luther King na década de 60, e não é um progresso humano na consciência política dos brasileiros que se vê nestas manifestações, mas um regresso brutal dele em que o ódio, o rancor e o ressentimento tomam conta das ações. Pois tudo que se vislumbra nestas manifestações é o poder pelo poder numa guerra de todos contra todos, cada um tentando ser melhor e mais forte do que o outro, sem saber que na luta entre quem é o mais forte, Gandhi e Martin Luther King já ensinaram que o mais forte nunca vence senão por um breve momento e forte é aquele que sabe suportar as maiores agruras mudando o mundo não com suas revoltas, mas com sua revolução de consciência silenciosa na qual pedras e paus não entram na história e a única bandeira a se flamular é a da igualdade, sempre.

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