Porque Deus quer...

Em 1998, recém-ingresso no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará, debati pela primeira vez com um colega de classe sobre a adoção de crianças por casais homossexuais. Na ocasião, ele defendia que isto não poderia ser aceito. Eu, o contrário. Seu argumento era básico: uma criança criada por homossexuais tenderia a ser homossexual e cresceria traumatizada por isto, tendo em vista que isto não é o normal. Praticamente 15 anos, depois vejo que esta discussão que ainda é atual, principalmente, com a tentativa do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB) de colocar em lei o ideal de família heterossexual que meu colega defendeu com tanto afinco na época, mas que, tempos depois, lembrando-nos deste momento, disse ter mudado o pensamento.

O argumento do meu colega à época, tão comum como o de muitos hoje em dia, era de uma pessoa que temia as diferenças sociais. Um temor que não permite ver que as coisas podem ser diferente do que são e do que foram que se converte em lei: a de que simplesmente as coisas não devem ser diferentes. Na época, não discutimos isto do ponto de vista religioso como se discute hoje, mas pensando deste ponto de vista, sua resposta poderia ser muito bem a de muitos hoje, que as coisas não devem ser diferentes porque Deus quer que seja sempre assim como pensam as pessoas.

Sempre fico impressionado com a capacidade que as pessoas têm de falarem em nome de Deus, de falarem em nome Dele a qualquer momento, a qualquer instante, como uma força onipresente em suas vidas e ainda mais impressionado de perceber em suas falas que ele é sempre pronunciado com rancor, com ódio, com preconceito contra tudo e contra todos. Porém, para quem conhecesse um pouco de história, inclusive a bíblica, isto não é novidade. Para os judeus, Deus sempre foi um ser vingativo, desde o Gênesis ao expulsar o homem do Paraíso, e são muitas passagens bíblicas em que desastres naturais são causados por Deus em vingança pelos atos humanos contra Ele. Uma vingança que os judeus têm muito presente em suas vidas hoje em relação aos palestinos por estes irem contra eles e que eles manifestaram de modo emblemático ao matarem Jesus Cristo crucificado por ir contra as leis de Deus não por meio de armas ou revoluções armadas, mas simplesmente por falar em nome de Deus de um modo diferente, de querer que a vida fosse diferente do modo que pensavam os judeus. Curiosamente, 2000 anos depois, os judeus sofreram pelo mesmo tipo de pensamento, quando Hitler se tornou ele próprio um Deus para os alemães e, em nome Dele, mandou matar de modo mais severo os judeus.

Morto pelo ódio dos judeus a qualquer pessoa que pensasse diferente deles, Jesus Cristo se tornou Deus para os cristão e a história, infelizmente, não foi diferente. Em nome Dele, a Igreja Cristã Católica Apostólica Romana, conquistou o mundo com as armas romanas em punho, matando todos aqueles que pensavam diferente dela, ou melhor, do que Deus, Jesus Cristo, tinha pensado e que somente ela sabia bem. Mulheres morreram, neste sentido, porque Deus quis, tendo em vista que curavam pessoas com suas plantas e ervas, e homens foram torturados e mortos por pensarem de modo diferente do que a Igreja Cristã Católica Apostólica Romana pregava em nome de Deus. Atualmente, a Igreja Católica reviu muito de seus posicionamentos e pediu perdão por seus inúmeros erros do passado, inclusive, por ter estado ao lado de Hitler quando da assunção deste. E, mais recentemente, o então Papa Francisco tem demonstrado um interesse pessoal maior em agregar a diferenças sociais na visão cristã da Igreja Católica, apesar de pagar um preço alto por isto.

Com Martinho Lutero, porém, Deus passou a querer algo diferente do queria através da Igreja Cristã Católica Apostólica Romana sob a tutela do Império Romano. O querer de Deus passou a depender do modo como cada indivíduo lesse a Escritura Sagrada. Obviamente, ele foi excomungado por causa disso, afinal, Deus não queria que se pensasse assim segundo a Igreja Católica da época e depois deste primeiro cisma histórico o cristianismo nunca mais foi o mesmo. Nem os quereres de Deus que manifestam hoje nas mais diferentes leituras da Bíblia em diferentes lugares espalhados pelo mundo e em qualquer esquina, como quer a deputada estadual cearense Dra. Silvana (PMDB), mas que, mesmo assim, não faz a cidade de Fortaleza ser mais pacífica, nem o mundo, diríamos.

O pluralismo religioso advindo de Martinho Lutero deveria nos ensinar bastante sobre os quereres múltiplos de Deus, mas, pelo contrário, hoje, ele também abre espaço novamente para um querer único, como foi o da Igreja Católica. E, pior ainda, um querer muito aquém da liberdade que Lutero tanto apregoou em suas 95 teses pregadas na porta de uma Igreja na época. E como não se bastasse isso, não com o intuito de renovar a religiosidade das pessoas numa retidão de caminho, mas de impor a todas elas um único querer de Deus. Assim, as religiões que tão livres se tornaram em sua forma de lerem a Bíblia e desvendarem os desígnios de Deus desde a Reforma Protestante iniciada com Lutero, agora, querem que todos façam o que elas mandam, pensem como elas. Por que? Porque Deus quer.

Deus quer, portanto, que se grite no meio da rua para todos ouvirem, quanto mais alto melhor, importunando a todos com a palavra de Deus, que não deve ser mais uma fala prudente e calma, mas raivosa e pungente. Deus quer se oprima a mulher que deve sempre obedecer ao homem mesmo quando ele quiser violentá-la (para saberem mais como Deus quer que a mulher seja leia aqui um resumo básico com embasamento bíblico). Deus quer que homossexuais sejam humilhados e excluídos da vida social por não procriarem. Deus quer que crianças permaneçam abandonadas porque nenhum casal heterossexual cristão e temente a Deus quer criá-las e elas não podem ser adotadas por homossexuais, se não vão se tornar "isto" também. Deus quer que as pessoas negras também sejam excluídas por cultuarem seus Deuses considerados demoníacos. Enfim, Deus quer tudo que for mal para todos aqueles que não leem a Bíblia como os religiosos descendentes da Reforma Protestante.

Isto, porém, não é um problema apenas do cristianismo, haja vista que o mesmo acontece atualmente com o Islamismo em muitos outros países e, hoje em dia, o que Deus quer para eles é manifesto de formas bem mais cruéis do que pretendem, pelo menos por enquanto, os descendentes protestantes e alguns cristãos ortodoxos. E se os judeus sofreram recentemente o que fizeram com os cristão em tempos antigos, hoje, os cristão também sofrem o que fizeram como muitas outras religiões em tempos antigos e ainda fazem recentemente. O que vendo a história sobre o ponto de vista do que Deus quer segundo as três maiores religiões do mundo, podemos resumir estranhamente o que Ele quer do seguinte modo: Ele quer que todas lutem e se matem entre si para saber quem mata mais e se torna a religião mais poderosa do mundo.

Falar em nome de Deus, a partir do que Ele quer, sob este aspecto parece sempre ser um bom motivo para religiosos serem cruéis com os outros, com palavras ou com armas, excluindo-os ou matando-os, matando-os aos poucos em tortura privadas ou públicas ou de uma vez aos milhares. E isto, para mim, é o mais estranho, que a partir do que pensam estes religiosos Deus seja o principal motivo de toda a maldade humana que eles mesmos produzem, que amar a Deus seja o motivo para odiar quem quer que eles queriam, que em nome de Deus os religiosos possam excluir e matar quem querem e a depender da religiosidade deles nunca viveremos em paz com os que pensam e são diferentes, mas com ódio constante deles, enfim, porque Deus quer tudo isto segundo pensam. Que o fundamentalismo religioso (cristão, protestante ou islâmico) seja a solução para todos os nossos problemas sociais quando muitos destes problemas são causados por eles em nome de Deus e o Estado Democrático não seja mais a representação de todos, mas do que Deus quer através da religião dos políticos eleitos. Enfim, que o que Deus, para muitos, seja a celebração de todo o ódio humano pelas diferenças sociais: de homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, brancos e negros e indígenas.

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