Boyhood: uma vida de separações

Muitos filmes já retrataram a passagem do tempo no cinema com mudanças de paisagens e personagens envelhecendo em maquiagens surpreendentes, um dos mais interessantes que tenha visto há pouco tempo, sendo o filme Sr. Ninguém (Nobody, 2009), de Jacob van Dormael. Muitos também já dramatizaram separações dolorosas também como no próprio Sr. Ninguém. Nenhum, porém, da maneira que Boyhood (2014), de Richard Linklater, o mesmo diretor da trilogia Antes... (do amanhecer, do pôr-do sol, da meia-noite).

12 anos separam o início e o fim deste filme, mas também os une. Talvez os 12 anos possam ser visto como um tempo muito longo para sua produção e talvez seja mais uma curiosidade que sites de filme informem aos seus visitantes despreocupadamente. Contudo, este tempo é mais do que uma simples contagem de anos e, por mais que não figure como título dando-lhe dramaticidade, ele é o personagem principal deste filme, como se pode perceber no fim dele.

O tempo que se retrata neste filme é, de certo modo, o tempo de vida: dos personagens, mas também dos atores, que durante 12 anos se reuniram durante este tempo para filmá-lo, totalizando 39 dias de filmagens. Um tempo curto comparado ao tempo de sua produção que seria muito curioso ser destacado se não fosse o fato do tempo se tornar importante justamente quando ele estende em anos e anos, como uma vida.

Ao assistir a este filme, talvez alguém o deixe de lado logo nos primeiros minutos. Sem cargas de dramas acentuados nos personagens a vida dos personagens passa despercebida quase sempre como a nossa própria vida, perdida em coisas cotidianas sem sentido que vão se acumulando, se amontoando e nos levando junto com ela, até que simplesmente nos desfazemos de tudo. Separamo-nos. Não por acaso, o filme é sobre separação, apesar de qualquer sinopse crítica do filme dizer que é sobre a criação dos filhos (Samantha e Mason Jr.) por pais separados (Olivia e Mason), fazendo-nos pensar que a separação que se trata nele é simplesmente a dos pais e todos os dilemas de uma mãe solteira e um pai ausente.

Se a separação de Olivia e Mason é, sim o mote inicial do filme, do seu enredo, ela também de sua produção e é isto que faz deste filme ser uma retratação do tempo jamais vista no cinema e pouco a ser imitada, pois não terá mais sentido. A aura da separação retratada por ele, como diria Benjamin, estará perdida. O tempo em sua separação de anos, momentos, períodos de vida, início e fim, terá se perdido e não se poderá mais se buscar, mesmo involuntariamente, como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. O tempo que Richard Linklater retratou tão bem não apenas na tela, mas também por trás dela, como tempo de vida.

Como mote do filme, a separação é o que perpassa por todo ele e é preciso se acostumar com ela pois ela faz parte da vida, ou melhor, ela constitui toda a vida: a dos personagens de Olivia e Mason, separados desde o início do filme, sem dramas, mas também de Samantha e Mason Jr., que a cada momento são obrigados a deixar para trás suas coisas, suas amizades, a vida que tinham para seguir sua mãe em busca de alguma coisa que preencha sua vida: a faculdade, um emprego, um marido... Bem como, a separação perpassa a vida dos atores, separados a cada ano durantes as filmagens, com a qual também eles deveriam se acostumar. Ou, melhor dizendo, não se lamentar: "não olhe para trás", diz Olívia a seus filhos, depois de mais uma separação.

Não olhar para trás é o que devemos fazer a cada separação e é o que define a separação ela mesma a qual, apesar de ser um olhar para frente, faz-nos sempre pensar no que deixamos para trás e muitas vezes querermos voltar, como se isto fosse nos fazer viver melhor. Não fará, diz Olivia, indiretamente a seus filhos, em geral, Mason Jr., sempre olhando para fora do vidro do carro o que está deixando e que não costuma olhar para frente, sem perspectiva de vida, deixando o tempo passar e sua infância (boyhood) consigo. Ele mesmo representando o tempo de vida que se estende pelos 12 anos de produção, indo da infância à juventude na tela, a cada momento sendo retratado não apenas como personagem, mas também como ator.

A passagem da infância à juventude de Mason Jr. como personagem e como ator já foi feita várias vezes na televisão, como na série Anos Incríveis e, mais recentemente, Todo mundo odeia o Cris, não por menos ambas retratando a vida familiar. E, neste sentido, enfatizar isto no filme não é digno de nota. Porém, em ambos os casos, é a união familiar apesar de tudo o tema de ambos, diferente, portanto, da perspectiva de separação familiar que ele propõe e que, se está presente no início do filme, não é um problema da família contemporânea, como se poderia pensar, mas uma solução para ela. Foi se separando que Olivia e Mason encontraram a si mesmo e conseguiram cuidar de seus filhos não de modo problemático como se poderia pensar por viverem separados, algo impensável para quem vive um ideal de família convencional, como se a separação fosse um fim e não um princípio, um começo, ou recomeço.

Neste sentido, há pelo menos duas formas de ver e aceitar a separação em Boyhood: de modo passivo, como algo inevitável, um momento na vida de uma pessoa, um fim, ou de modo ativo, como algo que se busca, uma ação mesma de separar, se separar, de algo em prol de algo mais. O primeiro modo é propriamente o infantil, de Samantha e Mason Jr., mas também de Olivia e de Mason quando este diz que se ela tivesse tido mais paciência teria visto ele se tornar o homem chato e responsável que ela sempre quis. Crianças não gostam de se separar, elas não aceitam separações senão a contragosto, ressentidas, chorosas como Samantha ou silenciosas como Mason Jr. absorvendo muito mais do que são capazes de entender, passivas diante do que a vida lhes impõe sem que lhes perguntem nada, como faz o padrasto de Mason Jr. com seu cabelo. O segundo modo é propriamente o da juventude cuja separação é um ato constante de autoafirmação, de busca constante de novas experiências, de autoconhecimento e que traz consigo o conflito inerente que as separações causam quando já não são produzidas mais pelos outros e, sim, por si mesmo, quando se é o agente da ação de separar e não mais o paciente da separação.

Estes dois modos podem ser vistos pelo tempo de vida dos filhos em meio à separação do pais, de sua infância à juventude, mas também se expressam nos pais invertidamente. Agentes de uma separação inicial, Olivia e Mason buscaram sua própria autoafirmação, experiências de vida, autoconhecimento, cada um a seu modo, ambos sofrendo as consequências delas. Porém, à medida que os filhos crescem são eles que sofrem pacientes a separação dos filhos que a cada experiência de vida buscada se distanciam mais deles. E cada mudança no tempo de vida dos personagens/atores expressa não por menos um tempo de vida que se foi, um vida que se deixou para trás, uma separação deles em relação aos pais em busca de si mesmos.

Neste sentido, o que se vê representado neste filme é uma ode à separação, não como algo problemático na vida de um casal, por mais que se possa ver isto representado nele, mas como algo que faz parte da vida, que se deve vivenciar sem dramas, apesar do quanto isto é difícil. Separação entre pai e mãe, entre pais e filhos, irmão e irmã, namorado e namorada, infância e juventude, que é também uma união entre estes opostos, que constitui a ligação deles entre si e consigo mesmos. Por sua vez, uma separação que é paradoxalmente uma união apesar de tudo, da distância que os separam e o que pai de Mason diz para ele, de que se ele se mudar, aumentará apenas mais algumas horas de distância para ir até ele, demonstra o quanto a separação produz uma união muito maior do que as pessoas imaginam. E ver este filme por estes olhos é imprescindível para absorver dele tudo que ele tem de bom em sua simplicidade expressa particularmente na vida de Mason Jr., mais um jovem sem perspectiva de vida por não ser aquele jovem que todos esperam que seja, que busca captar na lente de sua câmera fotográfica não a si mesmo para uma postagem no facebook, mas a vida que passa diante de si a cada momento tentando compreendê-la um pouco mais e a si mesmo.

Por fim, se é uma vida de separações que se pode ver do início ao fim deste filme, estas separações são aquilo que mantém unidos todos os momentos dele, da vida, pois a união é o fim de toda separação, não apenas praticamente, mas teleologicamente. É a separação ela própria uma união dos contrários e se o início do filme começa com ela, com a separação dos pais, seu fim expressa um união, a conclamação da união familiar na separação dos filhos, quando a infância deles encontra a juventude ao mesmo tempo que esta se separa dela e todos se unem num só e mesmo momento de plenitude, o fim do filme, mas não da vida, já que um novo ciclo se renova ao final do filme com a sua separação inicial, que é a de qualquer início, dando lugar a uma união, que é o princípio de qualquer fim.

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