Big Brother Brasil e o poder da vigilância

Início de ano, volta às aulas, planejamento escolar, IPTU, IPVA, novos governos, crise econômico-político mundial, mais um escândalo da Petrobrás e hora de assistir a mais nova versão do Big Brother Brasil (BBB), "reality show" que por mais que não se queira vira tema de conversas, críticas, piadas e faz relembrar a distopia 1984, de George Orwell, que deu origem ao nome deste programa de televisão com sua famosa imagem do Big Brother e que é o ano de lançamento de outra distopia emblemática no cinema, Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Por sua vez, em 1985, havendo o lançamento de uma distopia pouco conhecida chamada Brazil, de Terry Gilliam, que, no Brasil, ganhou o subtítulo de O outro lado do sonho.

Em épocas de terrorismo aflorado no mundo, literalmente, em todos os lugares do mundo, independente dos motivos ideológicos subjacentes a ele, religiosos, econômicos ou políticos, na África, no Oriente Médio, na Europa, na rua, em casa, no trabalho, na escola, nada melhor do que assistir ao Big Brother Brasil e esquecer tudo isso. Contudo, por mais que alguns tentem esquecer de tudo isso assistindo a este programa e muitos critiquem os que assistem a ele associando-o a mais uma vulgarização midiática da vida humana, sendo melhor se preocupar com todo o terrorismo reinante, ou escapar a ele de outro modo, é importante analisar o poder de vigilância que este programa expressa. Isto porque se ele tem relação com a vigilância expressa no livro-filme 1984, do qual ele deriva o nome, ele expressa mais do que o desejo de vigília ou de vigiar o próximo de modo paranoico, pois expressa um desejo muito mais humano que é também de todo e qualquer ser: o desejo de proteção, diretamente relacionado ao que Spinoza teorizou em seu conceito máximo de conatus, um esforço de todo ser em preservar sua existência (“toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”, Ética III, prop. 6). Isto porque todos os seres, e principalmente o homem, ao perseverarem no seu ser, tem a necessidade e se esforçam para se protegerem de algum modo e, não por acaso, numa reunião do meu condomínio para tratar da instalação de câmeras de segurança nele, o pensamento de um dos condôminos foi de que não se importava se as câmeras ficassem apontada para sua casa, não se importando, portanto, com a limitação de sua privacidade. 

Talvez pareça estranho isto, como é para muitos a ideia de vigilância expressa no Big Brother Brasil, mas é interessante observar que, se a privacidade é aquilo que expressa o que nos é íntimo, aquilo que é mais importante, refletida não por menos na ideia de casa ou de casulo, ninho ou mesmo ovo, não há nenhuma contradição entre privacidade e querer ser vigiado a todo instante, ou qualquer aberração em querer isto num reality show, tão pouco limitação de privacidade se justamente o intuito do ser humano, e qualquer ser, para Spinoza, é justamente proteger aquilo que lhe é mais particular, o próprio ser. E se alguma coisa acontece no meu coração, quando eu cruzo a Ipiranga com a Avenida São João, diria Caetano ao lembrar de seu passado neste cruzamento, talvez não sejam agora suas lembranças e, sim, o fato de se sentir vigiado mais hoje do que em sua época ou em qualquer época da vida humana, e que ele, como muitos, tem que admitir aquilo que Benjamin (1994, p. 108) disse já em 1931, em sua Pequena história da fotografia, que: "Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos."

Algo acontece hoje em dia, portanto, que já acontece há muito tempo na história dos seres e, principalmente, na história da humanidade que é a necessidade de vigiar o próximo e o distante para se proteger mais do que saber de sua vida, e, consequentemente, das diferenças que ela tem com a sua. Algo radicalmente diferente do que previra George Orwell, em 1948, quando numa inversão de números, pensava que no ano de 1984 uma vigilância constante, inclusive por meio de câmeras, constituiriam um Estado e poder autoritário sobre o ser humano ao ponto dele querer se libertar. Uma previsão que o filme Laranja Mecânica, neste mesmo ano, prolongaria por mais alguns anos contrapondo a ela a ultra violência enquanto poder autoritário seja de vândalos (manifestantes ou terroristas hoje em dia), seja de governos, e que a comédia de Terry Gilliam viria expressa no Brasil mesmo em sua burocracia, para além do que Kafka imaginaria n'O processo.

Com o Big Brother Brasil, ou quaisquer variações deste programa em outros países, se permanece o desejo do homem em proteger o seu ser, muda a forma de vigilância quanto a isto, pois a vigilância não é do outro, mas de si mesmo. A câmera símbolo deste programa não simplesmente representa a vigilância daqueles que estão na casa feita por quem está fora dela, por interesse ou puro voyeurismo, mas de quem está fora também. Não por menos, virada para o telespectador, ela mira sua vida expressa não somente em temas banais ou conflitos, mas em sua necessidade de existência, de se manter vivo, sorrindo por estar sendo filmado e, deste modo, protegido.

A vida das pessoas dentro da casa é a expressão da vida das pessoas na realidade em seu desejo de serem vigiadas constantemente que a câmera fotográfica não por menos trouxe à tona, invertendo todo o panoptismo de Bentham e mesmo escapando à tese de Vigiar e punir, de Foucault, a partir da qual a vigília, o ato de vigiar de um aparelhamento de Estado é incorporado ou produzido de modo micro-político pelas pessoas em seu cotidiano com o fim de punição, e, deste modo, a la 1984, deve ser execrado. Bem diferente do que sonha a nossa vã filosofia, a realidade vai além e em seu ir além, o foco da vigilância para milhões não é o outro, mas a si mesmo, sua privacidade, a preservação de todo o seu ser no momento em que o terror pela violência, o leimotiv de toda vigilância e poder autoritário, aflora no mundo a fora, bem como em casa.

Portanto, não é uma manipulação da realidade ou alienação simplesmente o que se vê no Big Brother Brasil tal qual no Big Brother de 1984, pois, enquanto este manipulava a vida das pessoas da Oceania (ver mapa) deturpando os acontecimentos através de um Ministério da Verdade para motivá-las em sua vida cotidiana para uma guerra sem sentido contra a Eurásia e a Lestasia, no Big Brother não há manipulação da realidade, seja pelo fato de que quem está dentro não detém nenhuma informação, boa ou má, sobre o que acontece fora, seja por que ninguém que está fora é manipulado totalmente pelas imagens de quem está dentro da casa mais famosa do Brasil, diria Pedro Bial e Cia. Não há neste sentido nenhuma manipulação da realidade pelo poder de vigilância do Big Brother Brasil em semelhança ao Big Brother de 1984, e tão pouco a liberdade é ansiada como neste, já que o objetivo é justamente ficar preso o máximo de tempo possível, o que demonstra uma mudança dos tempos inigualável relacionada ao poder de vigilância.

Antes, no alto de torres, como foi representada simbolicamente pelo panóptico de Bentham, a vigília se destinava a olhar distante, além do horizonte, ou perto, aqueles a quem vigiava, criminosos, principalmente. Contudo, de seu raio de ação não escapavam também os inocentes, desde que se prove o contrário, e, sobretudo, eram estes que desejavam esta vigilância, não os criminosos. É a inocência, por sua vez, que se manifesta no desejo e poder de vigilância e não o crime e a punição, é a necessidade de se manter sempre inocente, portanto, nunca vítima de uma violação que está em questão em todo poder de vigilância e não a punição, que é apenas uma consequência de qualquer violação, vista ou em vigília ou não, ou ainda revista através de imagens de uma câmera. Donde o fato mais importante de todo poder de vigilância ser não o impedimento de um crime e sua consequente punição pela lei, mas a verdade sobre ele, ou a comprovação de que se trata de um crime de verdade, isto é, de uma violação da verdade mesma em seu bem, na medida em que com ele ela se identifica, segundo Platão.

Neste sentido, são os inocentes que são vigiados para não serem violados e não os criminosos para não cometerem crimes, mesmo que uma coisa não exclua a outra e os Big Brothers da vida não são só os que estão dentro da casa mais vigiada do Brasil, diria Bial novamente, famosidade e vigília andando juntas sempre. Big Brothers são todas as pessoas hoje em dia, principalmente, nas grandes cidades, que estão à espreita do mal a todo instante sem saber de onde vem e querendo se livrar dele com o olho gordo de uma câmera. Mas se olhar para nós mesmos é uma necessidade constante da modernidade da geração selfie assaz por fazer tudo sozinha, solitária, inocente e pobre de experiência segundo a Experiência e pobreza aludida por Benjamin, buscando sempre uma câmera para se fotografar e se filmar, é preciso pensar no que Benjamin disse em sua Pequena história da fotografia logo após dizer que devemos nos acostumar a ser vistos, que "Por outro lado, diz ele, teremos também que olhar os outros.", com isto querendo de dizer que devemos também nos importar com o outro, sem temor e tremor, isto é, sem terrorismo.

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