O que fazer com essa tal liberdade?

As recentes declarações do Papa Francisco de que a liberdade de expressão não deve ser para ofender e a recente declaração do primeiro ministro britânico, David Cameron, para quem a liberdade de expressão é também a liberdade de ofender, colocam em questão, bem entendido, a expressão da liberdade de modo radical para além de uma manifestação dela, a artístico-jornalística. Uma questão que evidencia uma problema entre o eu e o outro, no caso, o eu, francês, europeu, ocidental, chamado atualmente de Charlie, e o outro, migrante e imigrante, europeu e não europeu, ocidental e não ocidental, os não-Charlies, ou seja, todos aqueles que fogem à logica individualizante definida modernamente.

Sob este aspecto, a declaração de Cameron (aqui), mais do que uma discordância com o fato, revela algo mais problemático em princípio, que é a intolerância do ocidente em sua racionalidade secularizante europeia que não tolera, desde a Revolução Francesa, marcadamente qualquer forma de domínio do homem de um ponto de vista religioso, assim como os jornalistas do Charlie, mesmo que se digam religiosos, como diz Cameron: "Acredito que em uma sociedade livre há o direito de ofender as religiões. Eu sou cristão. Se alguém diz em algum momento algo ofensivo sobre Jesus posso achar ofensivo, mas em uma sociedade livre não tenho o direito de pedir vingança".

Quando diz que é cristão, mas aceita, como cristão ser ofendido como tal, talvez se pense que Cameron está sendo o mais cristão de todos, mais do que o Papa, fazendo valer o dito de que quando for batido em uma das faces, deve-se oferecer a outra, em vez de "pedir vingança". Ou talvez se pense que Cameron está exaltando o princípio de liberdade do outro em agir, desde que em conformidade com a lei, como ele acrescenta em seguida: "Temos que aceitar que os jornais e revistas possam publicar coisas que são ofensivas para alguns, contanto que estejam dentro da lei".

Em sua declaração, porém, Cameron expressa o pensamento de muitos que defendem a liberdade de expressão a qualquer custo como um benefício da democracia, um de seus pilares, senão o mais importante de todos. Sobretudo, um pensamento que é o do eu, europeu, ocidental acima de tudo que faz da liberdade de expressão uma liberdade opressão, pois é isto que implica a ofensa, uma opressão. Neste sentido, um pensamento que faz da opressão uma expressão da liberdade, mas, poderíamos perguntar: desde quando a liberdade de expressão se tornou uma liberdade de opressão? Desde quando, poderíamos responder, o eu se tornou mais importante do que o outro, não se confundindo nem um pouco com este.

Parece paradoxal, mas não é, e isto é senão a fonte de todo terrorismo atual, como se pode perceber no que diz um "ativista francês", que antes era um "terrorista", sobre o terrorismo na França, não contra os franceses, mas produzido por estes com seu preconceito na reportagem Preconceito alimenta o radicalismo na França. Ao se defender a liberdade de ofensa como uma liberdade expressão, ao fazer valer mais o que o eu diz do que o outro, inclusive, quando este outro é ele mesmo como cristão, Cameron, os europeus, os ocidentais, defendem não por menos aquilo que os terroristas fazem para além das fronteiras de seus países, ainda que dentro delas isto seja intolerável. Eles defendem o direito de não aceitarem que outros os definam quem são, apenas a si mesmos, por si mesmos. Eles aceitam a opressão desde quando a opressão é definida por eles mesmos, mas não quando ela vem dos outros. Puro egoísmo, dir-se-ia, ou narcisismo, ou ainda, masoquismo, em nível patológico, que teria como fundamento, um sadismo apesar de tudo.

Enfim, o que se coloca com o pensamento de Cameron-Charlie é que o que se deve fazer com essa tal liberdade é oprimir o outro para satisfazer o eu, ou o ego, a qualquer custo, aumentando sempre a tiragem de jornais e seu capital econômico ou o capital político, no caso dos políticos, que ao defenderem seus países dos terroristas fazem esquecer a intolerância deles mesmos para com os outros, que não têm direito à liberdade de expressão alguma em sua próprias fronteiras, esquecidos pelos franceses, europeus, ocidentais racionais e secularizados.

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