Blue Chips e o valor do amanhã

Blue Chips é um filme sobre basquete, de 1994, dirigido por William Friedkin, com Nick Nolte e Shaquille O'neal que nunca assistiria se não fosse o zapear da televisão, aproveitando o tempo de descanso durante o recesso escolar. Ele é um filme interessante, pois coloca em questão o valor econômico da educação e das habilidades e competências de cada ser humano como capital humano, abordada de um ponto de vista ético. De um modo simples, ela se coloca problemática a partir do momento em que o técnico Pete Bell deve fazer uma escolha entre seus posicionamentos éticos defendidos até então e a atitude que deve tomar diante da perda da última temporada de basquete do time universitário da Universidade de Western.

A questão que se coloca ao técnico Bell é a seguinte: deve ele pagar em dinheiro ou em bens para ter os melhores jogadores de basquete juvenil do país na Universidade Western e assim superar a perda da última temporada se reafirmando como um técnico ganhador ou não? Uma questão ética complicada tendo em vista que sua universidade tem como política não fazer isto, privilegiando a contratação dos jogadores a partir da excelência de seu "programa" de estudo. Ou seja, utilizando o estudo como benefício aos jogadores que quiserem jogar basquete por ela e a formação acadêmica como o maior ganho por jogar nela, uma das poucas a fazerem isto, já que todas as demais, pressupostamente, pagam literalmente pelos melhores jogadores além do benefício de estudarem nelas.

Esta questão esta diretamente ao contexto escolar norte-americano e remete à questão do valor econômico da educação e das habilidades e competências do ser humano denominada pelos economistas americanos Theodore Schultz e Gary Becker a partir da década de 60 como capital humano. No caso, Schultz considerando que a educação é um valor a ser contabilizado dentro dos cálculos econômicos e que o estudante enquanto está na escola deve ser contabilizado pelo salário que não está recebendo para estar lá. E Gary Becker, considerando que a formação técnica dos estudantes deve ser valorizada economicamente tendo em vista o ganho de experiência no trabalho ou uma melhoria na sua habilidade.

Vivendo a partir do estudo que consegui durante 10 anos de universidade, hoje capitalizado em meu trabalho como professor concursado e tendo, durante todo o ensino médio tendo jogado voleibol por minha escola, tendo começado a jogar em 1994, posso dizer que vivi esta dupla questão do valor econômico da educação e das competências e habilidades. Seja porque consegui no terceiro ano do ensino médio uma bolsa de estudo de 100% na escola em que estudava a partir de uma prova de conhecimentos em matemática e português, incluindo redação, seja porque, na seleção de voleibol da escola pela qual jogava, alguns jogadores terem as mesmas bolsas de estudo, mas por jogarem muito bem, isto é, por suas competências e habilidades no voleibol. Esta uma prática comum da escolas particulares para atrair também para si os melhores atletas, além dos melhores estudantes. Mais ainda, por eu mesmo ter agenciado um estudante de outra escola, meu vizinho, para jogar por minha escola tempos depois ganhando uma bolsa de 100% também, sem que eu tivesse nenhum ganho por isto. E, para isto, ter que argumentar muito com sua mãe diante da preocupação dela de que se ele não iria para esta escola somente para jogar em vez de aprender, o que eu lhe assegurava que não, pois ele teria que ter nota boas para poder jogar, semelhante ao que se coloca em uma determinada cena do filme.

Como o treinador Bell sempre acreditei e ainda acredito e acreditarei no valor da educação para o amanhã, independente dos ganhos monetários que advenha dela e, defendendo isto, é interessante o diálogo dele com a mãe de um dos jogadores que pretende contratar para a próxima temporada sem ter que pagar por isto. Ela quer que o seu filho, Butch McRae, faça faculdade, que tenha uma boa educação, mas também quer ter ganho econômico com a habilidade de jogar do filho, por exemplo um emprego e uma casa nova, e sabe que muitas universidades pagam para ter bons jogadores como ele em seu time, mesmo que isto não seja permitido pelas regras. A resposta de Bell é exemplar, questionando-a se é assim que ela quer que seu filho comece a vida contrariando as regras e o que aconteceria com ele no futuro se continuasse assim. A resposta da mãe, apesar de hilária, demonstra algo que se tornou regra comum e sonho de muitos pais de jovens como o dela. Ela diz em tom de pergunta: "Seria milionário?"

Para além da questão de pais ambiciosos, vendo nas habilidades dos filhos uma oportunidade financeira de mudarem suas vidas, como é o caso desta mãe negra e pobre de Chicago e também do pai branco de outro jogador que diz a Bell que muitos outros lhe ofereceram um trator esperando conseguir dele também isto, os próprios adolescentes estão inseridos dentro desta lógica como Ricky Roe, filho deste agricultor de Indiana. De modo explícito, ciente de que Bell quer que ele jogue pela Universidade de Western, após visitar a universidade e ver as garotas bonitas que têm nela e treinar com seus companheiros, ele é bem direto ao falar de "negócios" e pedir 30 mil dólares para jogar por ela, e sabe que muitas outras fazem esperando que lhe entreguem este dinheiro em uma sacola do time como é comum fazerem. O que isto é rechaçado completamente pelo treinador que o expulsa da sala dizendo para ir pegar suas coisas e ir embora e se vê em quase sem alternativa ao que todos fazem e ele, se quiser ganhar a próxima temporada, também tem que fazer.

Em meio a esta lógica que coloca em questão os princípios morais e éticos do treinador Bell e que é irreversível no que diz respeito ao filme e mesmo à história da educação universitária americana, uma perspectiva diferente vem de onde ele menos espera, com Neon Bodeaux (Shaquille O'Neal), um negro pobre de Lousiana. Não tendo jogado pelo colegial, por ter se alistado no exército americano e ir combater coreanos, ele é mais um dos daqueles jogadores descobertos ao acaso, um talento bruto, que não teria outra oportunidade na vida se não fosse aquela que se abria para ele quando Bell o vê jogar num galpão fechado e ser ovacionado pelos expectadores. Bodeaux, diferentemente dos outros, não valoriza apenas o jogo, mas a educação e, apesar de parecer não ter futuro como acadêmico, pois seu último exame foi abaixo do nível para ingressar numa universidade, ele sabe muito bem o que quer, e não é dinheiro, mesmo quando lhe oferecem um carro Deluxe.

Em relação a Bodeaux, um diálogo dele com a ex-mulher de Bell, Jenny, demonstra seu caráter. Tendo em vista que ele deve fazer um novo exame para ingressar na universidade, mesmo que jogue bem, Bell pede a ela que é uma professora para ajudá-lo a passar no novo exame, o que ela aceita. Em um momento de estudo, ela lhe faz uma pergunta qual o país que fica logo ao sul dos Estados Unidos e como ele parece não saber, nem se esforçar para isto, ela lhe oferece 50 dólares se acertar a questão. Imediatamente ele lhe responde não apenas o país, como todos os outros além dele, dizendo se sentir humilhado ao fazer ela este tipo de questão para o espanto dela que lhe pergunta por que ele tirou nota baixa no exame se ele sabe tanto. A questão, como fica clara depois, é que Bodeaux é inteligente apesar do que aparenta e do lugar do qual veio, e sabe muito bem seu lugar na sociedade como fica claro ao pressupor que os exames de qualificação para as universidades são tendenciosos e quando se levanta no meio de uma aula de literatura inglesa, já na Universidade de Western, dizendo o mesmo para o professor e questionando porque não há aulas de literatura africana.

Bodeaux é, por sinal, o leitmotiv do discurso final do treinador Bell que resume bem o problema ético no qual ele se coloca. Pressionado em relação a ganhar a temporada seguinte e pressionado pelos jogadores Butch e Ricky quanto ao que querem ganhar, ele se vê tendo que aceitar a proposta de um dos "amigos do programa", de que ele e seus amigos paguem pelos jogadores como fazem em relação ao time de futebol americano da universidade, sempre de modo que ninguém pode consegue incriminá-los. Contudo, a cada momento ele se questiona por ter feito isto, o que se acentua quando ele ganha a primeira partida da temporada e se vê obrigado a declarar todo o esquema na primeira entrevista coletiva que dá. Ao mesmo tempo, faz um discurso apaixonado pelo basquete analisando o que tem acontecido a ele e às universidades que estão sendo tomados pelo dinheiro anunciando o que se tornaria comum hoje em dia, o que seja: empresários aliciarem crianças e adolescentes promissores em alguma modalidade esportiva para obterem lucro com suas habilidades e competências e mesmo universidades darem bolsas de estudo tendo em vista isto.

Mais do que uma prática comum, algo que se coloca como uma característica norte-americana e que serve para pensarmos a realidade brasileira é o fato de universidades fazerem isto e se oferecer, além do capital monetário, um capital humano relacionado à educação dos jovens jogadores de basquete, futebol americano e outras modalidades esportivas, algo que não se vê no Brasil onde isto é feito também corriqueiramente em relação aos jogadores de futebol, mas sem nenhum ganho de capital humano relacionado à educação. Neste sentido, o valor do amanhã para os americanos sendo não apenas a capitalização das habilidades e competências adquiridas na infância e adolescência, mas também as adquiridas com uma educação de qualidade além disso. Ao contrário do que acontece no Brasil no qual o amanhã de muitos jogadores é serem comentadores esportivos tendo em vista que não sabem nada além das quatro linhas.

Se a capitalização da educação e das habilidades e competências é algo ruim de um ponto de vista ético, como o treinador Bell defende, seu discurso sobre Bodeaux no fim do filme, no qual diz que este jogaria muito mais se lhe dessem uma Ferrari em vez do carro que lhe ofereceram, deixa implícito se não se isto não seria o que se deve ser feito por crianças e jovens como ele sem nenhuma perspectiva e oportunidade na vida. Bem como na cena final do filme em que, tendo deixado o time pelo que fez de errado, no caso, pagar para jogarem pela universidade, ele se vê diante de crianças jogando basquete num quadra de rua e percebe um dentre outros meninos que sobressai e vai ensiná-lo, demonstrando aquilo que acontece muitas vezes nas peneiras* da vida.

*Peneira é como se chama a seleção de crianças e jovens promissores no futebol brasileiro, quando eles jogam para serem avaliados por técnicos de base de vários clubes e, não por menos, por empresários de todo o mundo que buscam agenciá-los, nenhum com proposta de universidade para eles.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.