A modernidade da Geração Selfie
A geração selfie é muito mais do que um rostinho bonito numa rede social e a expressão de nossa sociedade atual altamente tecnologizada pelas mídias digitais. Ela é a expressão de todo o individualismo surgido na modernidade com o Iluminismo e o contrato social em prol dele. Mais do que uma geração da imagem de si mesmo, ela é uma geração do indivíduo por ele mesmo em vários sentidos.
Com o desenvolvimento das tecnologias e sua popularização a partir da Internet, deu-se início a um corte profundo no modo de analisar as gerações. Antes analisadas pelo que sofriam em termos políticos sociais como perdida, grandiosa, silenciosa, baby boom até ser considerada uma incógnita, a geração x, as pessoas passaram a ser vistas a partir de sua relação com as novas tecnologias relacionadas à Internet. Neste sentido, desenvolveram-se as gerações y, z que demarcam a inclusão num mundo virtual cada vez mais crescente e que muda a cada componente das novas tecnologias. (Sobre estas gerações e as seguintes, aqui.) Antes limitadas a grande períodos de tempo, atualmente elas se limitam a espaços bem definidos na rede do ponto de vista do que é utilizado nela como a geração Orkut, substituída recentemente pela geração facebook e várias outras que particularizam este ou aquele aplicativo.
Geralmente identificada com uma juventude e como esta se insere no mundo em que vive, estas gerações expressam as características de seu tempo, mas se a analisarmos em conjunto, expressam um só e mesmo período de tempo, o moderno ou da modernidade a qual vivemos de modo contemporâneo. Seja porque este período surge com a fomentação cada vez maior de um individualismo e um liberalismo, político e econômico, a partir de um contrato social que estabelece os limites do ser humano enquanto indivíduo em sua liberdade, seja porque, principalmente, ele fomenta um iluminismo cada vez maior dele expresso nas máximas de Voltaire, "Pensai por vós próprios." e de Kant, "Sapere aude!", esta dita de forma emblemática no célebre texto Resposta à pergunta: "O que é esclarecimento?" (1873) e que é a expressão mais clara da modernidade da geração selfie contemporânea em todas as suas contradições inerentes quando responde diretamente esta pergunta ao dizer que:
A reposta à pergunta o que é esclarecimento de Kant coloca em questão a modernidade da geração selfie no que diz respeito a uma pedagogia da autonomia nela contida a partir das tecnologias da informação e comunicação e vai além, neste sentido, do mero gesto de fotografar a si mesmo, ainda que, obviamente, tenha sido nomeada a partir do gesto de se fotografar, principalmente, o rosto, e além da época atual. Ela diz respeito a como nos comportamos como indivíduos na sociedade, isto é, ao estabelecermos relações sociais a partir de um determinado contrato social que tem mudado frequentemente com a utilização das novas tecnologias da informação e comunicação a partir da Internet. Neste sentido, diferentes opiniões tem se manifestado de modo comum, em geral, em como vivemos a história atualmente no que diz respeito principalmente à memória, como alerta muito bem o pesquisador escocês Andrew Hoskin, ao dizer que "as pessoas estão obcecadas pelo ato de registrar uma certa imagem. Memória não é registro, e sim,o ato de lhe dar significado" (“Era Selfie”: como ficam as memórias e o legado entre gerações?, grifos meus) e que isto está mudando o modo como vemos o passado a partir do que ele denomina por iMemory, a memória digital.
Para além das consequências temerárias que ele aponta, como a de um "esvaziamento da memória" produzida pela utilização das novas tecnologias e, principalmente, dos selfies, que, segundo ele, estão passando do limite, há sobretudo hoje em dia uma tendência a negar o passado constituído pelas experiências individuais como ele também afirma ao dizer que:
Em diversos textos célebres, Walter Benjamin apontou o início da geração selfie a partir do desenvolvimento da tecnologia, entre eles, todos os que compendiam o livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e política, com destaque aqui para: O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia (1929), Pequena história da fotografia (1931), O autor como produtor (1934) e o mais prenunciativo de todos A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-36). Isto porque em cada uma dos textos deste compêndio de suas obras escolhidas, ele analisa as mudanças na literatura e na cultura de sua época, principalmente com o avanço das tecnologias de modo catastrófico com as duas guerras mundiais, mas também a mudança de atitude dos indivíduos frente a estas tecnologias. Em Pequena história da fotografia (1931), ele antevê a instantaneidade e a magia que a antiga "câmera escura" representa para seus contemporâneos que é senão a mesma para a geração selflie com seus telefones inteligentes (smartphones) quando diz que:
Em seu texto O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia (1929), ele já supunha a instantaneidade e a magia na arte moderna, mal supondo, porém, que seria o primeiro momento desta "inteligência" que se manifestaria de modo mais presente nos meios de comunicação como o jornal que vem superar as várias formas literárias antigas e no qual estas se confundem deixando se oporem, pois: "O jornal é o cenário desta confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não seja a que lhe é imposta pela paciência do leitor." (BENJAMIN, 1994, p. 124) Mais ainda, surge com ele a presença do leitor não como um indivíduo passivo a ler a notícia, mas ativo, seja em sua paciência que define o que ler, seja porque: "Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. ...[e que] está sempre, igualmente, a escrever, descrever e prescrever." (BENJAMIN, 1994, p. 124. Grifo meu.) Neste sentido, cada um pode ser autor na medida em que detém os meios de produção, isto é, na medida em que se torna um produtor, o que isto se torna possível senão com o desenvolvimento da tecnologia, pois "para o autor como produtor o progresso técnico é um fundamento do seu progresso político". O que isto fundamenta o que a atriz Nathalie Macedo diz, ela mesma incluindo-se nesta questão.
O que o jornal faz com as diversas formas literárias, submetendo-as cada vez mais à tecnologia instantânea da matéria, o texto e o fato jornalístico, na qual a palavra se refere ao instante mesmo de um acontecimento, o cinema faz com as artes plásticas (pintura, colagem e fotografia) a partir da sua reprodutibilidade técnica. Neste sentido, a análise que Benjamin faz em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-36), não apenas resume seus pensamentos anteriores, como toda uma época em mudança a partir do desenvolvimento tecnológico. Uma época que introduz a da geração selfie sobremaneira ao pressupor uma mudança cultural lenta e ampla das "condições de produção" capitalistas a partir da reprodutibilidade técnica.
Partindo da premissa que "a obra de arte sempre foi reprodutível", Benjamin não apenas estabelece uma relação moderna da arte com a tecnologia, mas demonstra que esta sempre esteve relacionada àquela e à tentativa do homem de não apenas registrar ou arquivar um momento, mas de reproduzi-lo por imitação e difusão estes momentos por meio de uma determinada técnica, como foi com o molde e a cunhagem gregas a xilogravura, a imprensa, a litografia, a fotografia e, particularmente, com o cinema. Hoje em dia, nesta senda aberta por Benjamin, incluindo-se o computador e a Internet com tudo que esta pressupõe em termos de programas e aplicativos.
Diferentemente, porém, de suas análises anteriores em que o instante do aqui e agora (hic et nunc) é mágico e, por isto, merece ser registrado num texto literário jornalístico, num desenho ou numa fotografia, Benjamin analisa que o instante mágico do aqui e agora que ele denomina por aura é perdido ou atrofiado em sua autenticidade com a reprodutibilidade técnica, na medida em que, por exemplo, "a catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto." (BENJAMIN, 1994, p. 168. Grifos meus.) E adverte prognosticamente que: "Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido." (BENJAMIN, 1994, p. 168. Grifo meu de destaca do domínio.)
O abandono da aura, sua perda de autenticidade ou seu atrofiamento na medida em que o objeto reproduzido é destacado da tradição é a condição da reprodutibilidade técnica que marca a passagem de um valor de culto da arte, e não menos do ser humano a partir dela, para um valor de exibição dela e do ser humano. Em relação a isto, o que Benjamin diz a respeito da fotografia em sua Pequena história da fotografia e que retoma em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, é mais do que absurdamente atual ao esclarecer o que é a aura e ao mesmo tempo sua diferença em relação ao que acontece com a reprodutibilidade técnica hoje em dia, além de recolocar de modo diferente a pergunta de Kant sobre o esclarecimento, bem entendido:
Uma imagem e reprodução na qual o rosto humano tem um papel preponderante no ambiente e na paisagem, como demonstram e se pode aprender nos melhores filmes russos, diz Benjamin, nos quais o rosto humano da massa aparece pela primeira vez "na chapa com uma significação nova e incomensurável", a qual já alertava Lichtwark (Apud Benjamin, 1994, p. 103), em 1907, ao dizer que: "Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de nossos parentes próximos, de nossos seres amados". (Grifos meus.) Uma significação incomensurável que não é mais a do retrato ou de retratar cultivada pelos primeiros fotógrafos em fotografar a alta sociedade de sua época e sua vida social, como faziam antes os pintores, e sim, uma significação que é o valor de exibição que o rosto humano ganha com a reprodutibilidade técnica quando, ao analisar as fotografias de alemães do século XX do fotógrafo alemão August Sander, Benjamin (1994, p. 103) mais uma vez prognostica em sua Breve historia da fotografia que:
Olhar o outro. Esta assertiva é o principal problema da geração selfie aludida por muitos hoje em dia e cujas questões inerentes a ela remontam à modernidade no individualismo que ela constituiu com seu iluminismo hoje manifesto nas telas de muitos dispositivos e na dependência tecnológica do ser humano em relação a eles. A isto alude todos aqueles que pensam as tecnologias hoje em dia e anteriormente no que diz respeito à proximidade que ela produz em relação ao outro ao mesmo tempo em que o coloca cada vez mais distante de si, incapaz de se ver a si mesmo como outro em seu selfie. Olhar o outro que se converte mais no "processo de captar traços fisionômicos" do outro para melhor submetê-lo aos deslocamentos de poder, isto é, do outro em relação a si mesmo, diferente do que Benjamin pressupunha em relação a Sander, pois, já não se trata de olhar o outro como outro, valorizando-o em sua diferença, a partir de uma observação "isenta de preconceitos", mas justamente o contrário.
Neste sentido, tudo aquilo que é diferente de si mesmo, diferente da geração selfie, passa a ser visto como um problema. A tecnologia atual cria cada vez mais seres humanos autômatos não no sentido de máquinas, mas no sentido de seres que se pressupõe não precisar mais dos outros, não simplesmente para tirar fotos, mas de tudo. Há um processo de automatização da vida do ser humano a partir das tecnologias que o torna cada vez mais autônomo em sua vida do ponto de vista da autonomia pressuposta por Kant do discípulo em relação ao mestre ao ponto de esquecer a importância deste como outro, valorizando apenas a si mesmos e cada vez mais a si num processo de faça você mesmo (do it your self), ressaltando algo que Benjamin também pressupunha, que é o valor de culto que o valor de exibição adquiriria, já sem oposição, ao nos habituar a ser vistos. Hoje em dia, no caso, seja a partir dos selfies, seja de filmes produzidos por telefones inteligentes, de modo que "Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado.", tal como dizia Benjamin, em sua época, 1935-36, não menos ainda a nossa, na qual, sobretudo chegamos à época aludida por ele na qual "'o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar'" e em relação a qual ele coloca uma questão importante no que diz respeito à geração selfie: "Mas um fotógrafo que não sabe ler sua próprias imagens não é pior que um analfabeto? [Pois] Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?"
Que Charlie Hebdo e toda a geração selfie que ele representa o diga, ou nós, em cada selfie que produzimos.
Com o desenvolvimento das tecnologias e sua popularização a partir da Internet, deu-se início a um corte profundo no modo de analisar as gerações. Antes analisadas pelo que sofriam em termos políticos sociais como perdida, grandiosa, silenciosa, baby boom até ser considerada uma incógnita, a geração x, as pessoas passaram a ser vistas a partir de sua relação com as novas tecnologias relacionadas à Internet. Neste sentido, desenvolveram-se as gerações y, z que demarcam a inclusão num mundo virtual cada vez mais crescente e que muda a cada componente das novas tecnologias. (Sobre estas gerações e as seguintes, aqui.) Antes limitadas a grande períodos de tempo, atualmente elas se limitam a espaços bem definidos na rede do ponto de vista do que é utilizado nela como a geração Orkut, substituída recentemente pela geração facebook e várias outras que particularizam este ou aquele aplicativo.
Geralmente identificada com uma juventude e como esta se insere no mundo em que vive, estas gerações expressam as características de seu tempo, mas se a analisarmos em conjunto, expressam um só e mesmo período de tempo, o moderno ou da modernidade a qual vivemos de modo contemporâneo. Seja porque este período surge com a fomentação cada vez maior de um individualismo e um liberalismo, político e econômico, a partir de um contrato social que estabelece os limites do ser humano enquanto indivíduo em sua liberdade, seja porque, principalmente, ele fomenta um iluminismo cada vez maior dele expresso nas máximas de Voltaire, "Pensai por vós próprios." e de Kant, "Sapere aude!", esta dita de forma emblemática no célebre texto Resposta à pergunta: "O que é esclarecimento?" (1873) e que é a expressão mais clara da modernidade da geração selfie contemporânea em todas as suas contradições inerentes quando responde diretamente esta pergunta ao dizer que:
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual
ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio
entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.
A reposta à pergunta o que é esclarecimento de Kant coloca em questão a modernidade da geração selfie no que diz respeito a uma pedagogia da autonomia nela contida a partir das tecnologias da informação e comunicação e vai além, neste sentido, do mero gesto de fotografar a si mesmo, ainda que, obviamente, tenha sido nomeada a partir do gesto de se fotografar, principalmente, o rosto, e além da época atual. Ela diz respeito a como nos comportamos como indivíduos na sociedade, isto é, ao estabelecermos relações sociais a partir de um determinado contrato social que tem mudado frequentemente com a utilização das novas tecnologias da informação e comunicação a partir da Internet. Neste sentido, diferentes opiniões tem se manifestado de modo comum, em geral, em como vivemos a história atualmente no que diz respeito principalmente à memória, como alerta muito bem o pesquisador escocês Andrew Hoskin, ao dizer que "as pessoas estão obcecadas pelo ato de registrar uma certa imagem. Memória não é registro, e sim,o ato de lhe dar significado" (“Era Selfie”: como ficam as memórias e o legado entre gerações?, grifos meus) e que isto está mudando o modo como vemos o passado a partir do que ele denomina por iMemory, a memória digital.
Para além das consequências temerárias que ele aponta, como a de um "esvaziamento da memória" produzida pela utilização das novas tecnologias e, principalmente, dos selfies, que, segundo ele, estão passando do limite, há sobretudo hoje em dia uma tendência a negar o passado constituído pelas experiências individuais como ele também afirma ao dizer que:
As gerações passadas não tinham, como as de hoje, a possibilidade de distribuição e compartilhamento de suas memórias a um nível praticamente infinito e inimaginável que a web permite. Em compensação, tinham mais consciência de que eram arquivos vivos, daí fazerem registros mais seletivos dos momentos que realmente tinham como importantes em suas vidas. (“Era Selfie”: como ficam as memórias e o legado entre gerações?)Contudo, isto não se restringe à utilização das tecnologias, mas toda uma concepção atual que pensa muito mais em ser jovem, do que em ser velho ou careta, como analisou muito bem a atriz Nathalie Macedo:
Esta negação do passado não é privilégio dos jovens de hoje, nem da utilização de tecnologias, ela faz parte da juventude de sempre, mas, no que diz respeito à contemporaneidade, ela reflete um momento de contestação e negação dos valores sociais modernos ao qual foi dados vários nomes: hipermoderno, pós-industrial e pós-moderno, sendo este o mais usado. Este momento de ruptura com o passado, ou pelo menos tentativa disto, foi marcado de modo emblemático pelo Maio de 1968, com a insatisfação da juventude no modo como era tratada, particularmente na França, adquirindo conotações políticas cada vez mais pungentes em torno de questões que lhe eram de interesse quanto à sua vida cultural, como o sexo, as drogas e a cultura artística musical. Antes disso, ele era prenunciado de várias formas com o desenvolvimento das ciências e filosofia no início do século XX que mudariam a nossa forma de ver o mundo, pois conduzia cada vez mais para a dependência tecnológica que vive a geração selfie e que é senão sua condição de existência sine qua non.
Hoje, quem viu um documentário sobre ditadura militar acha que pode falar de igual pra igual com quem viveu a ditadura militar. O jovem lê o “Manifesto Comunista” e já se considera absoluto entendedor da obra de Karl Marx. Fazem download de meia dúzia de discos na internet e já se consideram grandes críticos musicais.
Toda sabedoria emanada da experiência de vida é careta e absolutamente duvidosa se o Google diz o contrário. Receitas de avó são ignoradas porque não são comprovadas cientificamente. (A geração das selfies, grifos meus.)
Em diversos textos célebres, Walter Benjamin apontou o início da geração selfie a partir do desenvolvimento da tecnologia, entre eles, todos os que compendiam o livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e política, com destaque aqui para: O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia (1929), Pequena história da fotografia (1931), O autor como produtor (1934) e o mais prenunciativo de todos A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-36). Isto porque em cada uma dos textos deste compêndio de suas obras escolhidas, ele analisa as mudanças na literatura e na cultura de sua época, principalmente com o avanço das tecnologias de modo catastrófico com as duas guerras mundiais, mas também a mudança de atitude dos indivíduos frente a estas tecnologias. Em Pequena história da fotografia (1931), ele antevê a instantaneidade e a magia que a antiga "câmera escura" representa para seus contemporâneos que é senão a mesma para a geração selflie com seus telefones inteligentes (smartphones) quando diz que:
Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloqüência (sic) que podemos descobri-lo, olhando para trás. (BENJAMIN, 1994, p. 94)
Em seu texto O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia (1929), ele já supunha a instantaneidade e a magia na arte moderna, mal supondo, porém, que seria o primeiro momento desta "inteligência" que se manifestaria de modo mais presente nos meios de comunicação como o jornal que vem superar as várias formas literárias antigas e no qual estas se confundem deixando se oporem, pois: "O jornal é o cenário desta confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não seja a que lhe é imposta pela paciência do leitor." (BENJAMIN, 1994, p. 124) Mais ainda, surge com ele a presença do leitor não como um indivíduo passivo a ler a notícia, mas ativo, seja em sua paciência que define o que ler, seja porque: "Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. ...[e que] está sempre, igualmente, a escrever, descrever e prescrever." (BENJAMIN, 1994, p. 124. Grifo meu.) Neste sentido, cada um pode ser autor na medida em que detém os meios de produção, isto é, na medida em que se torna um produtor, o que isto se torna possível senão com o desenvolvimento da tecnologia, pois "para o autor como produtor o progresso técnico é um fundamento do seu progresso político". O que isto fundamenta o que a atriz Nathalie Macedo diz, ela mesma incluindo-se nesta questão.
O que o jornal faz com as diversas formas literárias, submetendo-as cada vez mais à tecnologia instantânea da matéria, o texto e o fato jornalístico, na qual a palavra se refere ao instante mesmo de um acontecimento, o cinema faz com as artes plásticas (pintura, colagem e fotografia) a partir da sua reprodutibilidade técnica. Neste sentido, a análise que Benjamin faz em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-36), não apenas resume seus pensamentos anteriores, como toda uma época em mudança a partir do desenvolvimento tecnológico. Uma época que introduz a da geração selfie sobremaneira ao pressupor uma mudança cultural lenta e ampla das "condições de produção" capitalistas a partir da reprodutibilidade técnica.
Partindo da premissa que "a obra de arte sempre foi reprodutível", Benjamin não apenas estabelece uma relação moderna da arte com a tecnologia, mas demonstra que esta sempre esteve relacionada àquela e à tentativa do homem de não apenas registrar ou arquivar um momento, mas de reproduzi-lo por imitação e difusão estes momentos por meio de uma determinada técnica, como foi com o molde e a cunhagem gregas a xilogravura, a imprensa, a litografia, a fotografia e, particularmente, com o cinema. Hoje em dia, nesta senda aberta por Benjamin, incluindo-se o computador e a Internet com tudo que esta pressupõe em termos de programas e aplicativos.
Diferentemente, porém, de suas análises anteriores em que o instante do aqui e agora (hic et nunc) é mágico e, por isto, merece ser registrado num texto literário jornalístico, num desenho ou numa fotografia, Benjamin analisa que o instante mágico do aqui e agora que ele denomina por aura é perdido ou atrofiado em sua autenticidade com a reprodutibilidade técnica, na medida em que, por exemplo, "a catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto." (BENJAMIN, 1994, p. 168. Grifos meus.) E adverte prognosticamente que: "Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido." (BENJAMIN, 1994, p. 168. Grifo meu de destaca do domínio.)
O abandono da aura, sua perda de autenticidade ou seu atrofiamento na medida em que o objeto reproduzido é destacado da tradição é a condição da reprodutibilidade técnica que marca a passagem de um valor de culto da arte, e não menos do ser humano a partir dela, para um valor de exibição dela e do ser humano. Em relação a isto, o que Benjamin diz a respeito da fotografia em sua Pequena história da fotografia e que retoma em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, é mais do que absurdamente atual ao esclarecer o que é a aura e ao mesmo tempo sua diferença em relação ao que acontece com a reprodutibilidade técnica hoje em dia, além de recolocar de modo diferente a pergunta de Kant sobre o esclarecimento, bem entendido:
Em suma, o que é áurea? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. Mas fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada situação, através da sua reprodução. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou melhor, na sua reprodução. (BENJAMIN, 1994, p. 100)
Uma imagem e reprodução na qual o rosto humano tem um papel preponderante no ambiente e na paisagem, como demonstram e se pode aprender nos melhores filmes russos, diz Benjamin, nos quais o rosto humano da massa aparece pela primeira vez "na chapa com uma significação nova e incomensurável", a qual já alertava Lichtwark (Apud Benjamin, 1994, p. 103), em 1907, ao dizer que: "Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de nossos parentes próximos, de nossos seres amados". (Grifos meus.) Uma significação incomensurável que não é mais a do retrato ou de retratar cultivada pelos primeiros fotógrafos em fotografar a alta sociedade de sua época e sua vida social, como faziam antes os pintores, e sim, uma significação que é o valor de exibição que o rosto humano ganha com a reprodutibilidade técnica quando, ao analisar as fotografias de alemães do século XX do fotógrafo alemão August Sander, Benjamin (1994, p. 103) mais uma vez prognostica em sua Breve historia da fotografia que:
Trabalhos como o de Sander podem alcançar da noite para o dia uma atualidade insuspeitada. Sob o efeito de deslocamentos de poder, com os que estão hoje iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. [E] Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. [Mas] Por outro lado, teremos também que olhar os outros. (Grifos meus.)
Olhar o outro. Esta assertiva é o principal problema da geração selfie aludida por muitos hoje em dia e cujas questões inerentes a ela remontam à modernidade no individualismo que ela constituiu com seu iluminismo hoje manifesto nas telas de muitos dispositivos e na dependência tecnológica do ser humano em relação a eles. A isto alude todos aqueles que pensam as tecnologias hoje em dia e anteriormente no que diz respeito à proximidade que ela produz em relação ao outro ao mesmo tempo em que o coloca cada vez mais distante de si, incapaz de se ver a si mesmo como outro em seu selfie. Olhar o outro que se converte mais no "processo de captar traços fisionômicos" do outro para melhor submetê-lo aos deslocamentos de poder, isto é, do outro em relação a si mesmo, diferente do que Benjamin pressupunha em relação a Sander, pois, já não se trata de olhar o outro como outro, valorizando-o em sua diferença, a partir de uma observação "isenta de preconceitos", mas justamente o contrário.
Neste sentido, tudo aquilo que é diferente de si mesmo, diferente da geração selfie, passa a ser visto como um problema. A tecnologia atual cria cada vez mais seres humanos autômatos não no sentido de máquinas, mas no sentido de seres que se pressupõe não precisar mais dos outros, não simplesmente para tirar fotos, mas de tudo. Há um processo de automatização da vida do ser humano a partir das tecnologias que o torna cada vez mais autônomo em sua vida do ponto de vista da autonomia pressuposta por Kant do discípulo em relação ao mestre ao ponto de esquecer a importância deste como outro, valorizando apenas a si mesmos e cada vez mais a si num processo de faça você mesmo (do it your self), ressaltando algo que Benjamin também pressupunha, que é o valor de culto que o valor de exibição adquiriria, já sem oposição, ao nos habituar a ser vistos. Hoje em dia, no caso, seja a partir dos selfies, seja de filmes produzidos por telefones inteligentes, de modo que "Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado.", tal como dizia Benjamin, em sua época, 1935-36, não menos ainda a nossa, na qual, sobretudo chegamos à época aludida por ele na qual "'o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar'" e em relação a qual ele coloca uma questão importante no que diz respeito à geração selfie: "Mas um fotógrafo que não sabe ler sua próprias imagens não é pior que um analfabeto? [Pois] Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?"
Que Charlie Hebdo e toda a geração selfie que ele representa o diga, ou nós, em cada selfie que produzimos.
Nenhum comentário: