Liberdade de expressão e radicalismo

Je ne suis pas Charlie Hebdo. Dizer isto hoje parece um contrassenso e um desrespeito às vítimas deste que é considerado pela mídia brasileira como o maior atentado na França desde a guerra na Argélia e que é comparável, por um cartunista brasileiro ao 11 de setembro. Duas referências sintomáticas a um terrorismo antigo e atual que demonstram infelizmente com suas mortes também um poder de midiatização crescente hoje em dia no qual a liberdade de expressão se funde a um radicalismo simbolizado pelas mortes dos chargistas do jornal Charlie Hebdo.

O caso da Charlie Hebdo coloca em questão a liberdade de expressão e imprensa não apenas no que ela tem direito, mas também em seu limite ético no que diz respeito ao poder de midiatização que as questões cotidianas são colocadas hoje em dia. É óbvio que não é possível comparar as charges publicadas com os tiros desferidos pelos terroristas islâmicos, mas não se pode negar o radicalismo de ambas as partes ao ponto de terem entrado em conflito justamente por causa disso. Não será a primeira vez na história nem a última, infelizmente, que defensores religiosos matam pessoas por causa de suas crenças (a Igreja Católica já fez muito isto e com maior requinte há tempos atrás) e por motivos muitas vezes considerados fúteis, mas é preciso pensar em como as defesas radicais de pensamento de qualquer forma são problemáticas de um ponto de vista ético quando elas são midiatizadas de modo tão radical.

O texto do jornalista Lelê Teles intitulado Je ne suis pas Charlie (que seria, por sinal, o título desta postagem) demonstra o quanto este problema se coloca hoje em dia não apenas no que diz respeito à França, mas a todo o mundo e a referência ao terrorismo neste caso com a lembrança dos conflitos entre França e Argélia, quando esta buscava se libertar daquela através de ataques mortais e localizados, e do ataque mortal e imortalizado como terrorista pelo grupo islâmico Alcaida (Al-qaeda), demonstra o poder que a mídia tem em nossos dias de criar um fundamentalismo politico e religioso fanático. Basta ver os comentários ao texto de Lelê Teles para termos a dimensão do quanto a tão defendida liberdade de imprensa se transformou em liberdade de ofensa cujas vias de fato não é excluída da questão. Pelo contrário, é incluída como uma extensão das palavras desferidas como golpes por aqueles que querem ter razão, isto é, querem que suas vozes estejam em pleno acordo com a verdade e que mesmo detenham esta somente porque são suas vozes.

Ao lembrar dos conflitos entre França e Argélia, a imprensa brasileira pouco se deu conta e pouco repercutiu o que os atentados daquela época representavam e o fato de não ter feito isto, apenas os chamando de terroristas demonstra o poder de midiatização dos fatos muitas vezes distorcidos em relação à realidade, sem preocupação histórica. Mais do que isto, não se deu conta de como é doloroso para os argelinos defensores da liberdade contra a França colonialista compararem a sua luta pela liberdade do seu país a um atentado contra uma revista francesa por ofensas a um determinado profeta. Mais ainda não se dá conta de como isto tem relação com as relações que o Ocidente tem instaurado com a fé islâmica desde aquelas épocas, principalmente a França.

Nenhuma surpresa quanto ao poder de midiatização dos fatos pela mídia brasileira, principalmente da Rede Globo, que vocifera a quatro cantos a lembrança do conflito França e Argélia sem nenhuma perspectiva histórica, tendo em vista a deturpação histórica que ela fez recentemente em relação ao cantor Tim Maia em defesa de seus interesses e que repercutiu tanto quanto o caso da Charlie Hebdo. Fatos distantes em perspectivas que demonstram o poder de midiatização que alcançou seu ápice com os atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2011 e se faz presente ainda hoje como o maior atentado da história contra os americanos, depois de Pear Harbor, dir-se-ia.

Visto de modo absurdamente em plena execução, o ataque ao World Trade Center, o centro de comércio mundial, se tornou o símbolo do poder de midiatização hoje em dia para a qual a amplificação dos fatos para além da notícia se tornou uma regra tão comum que criou os chamados reality shows que se ver abundar pelo mundo e principalmente aqui, tamanha a necessidade das pessoas de verem a realidade pela mídia a todo instante e se verem, senão, nela também com a geração selfie. Esta que representa individualmente o poder de midiatização em nossa vida repercutindo através de redes sociais, as maiores redes midiáticas atualmente e que expressam em fotos descontextualizadas e comentários ofensivos a ideologia de Charlie Hebdo. No caso, a ideologia de fazer da mídia, neste caso, suas charges jornalísticas, a defesa de suas ideias, mesmo que elas ofendam os outros, dando assim ao que pensa um alcance muito maior do que teria. O que a mídia oficial faz com muito mais poder que eles e de modo muito mais complicado eticamente.

Charlie Hebdo representa o radicalismo da liberdade de expressão hoje em dia que as mídias oficiais com o seu poder de midiatização fazem como maior propriedade sensibilizando a todos com a morte dos chargistas por dois homens muçulmanos que resolveram levar às vias de fato as ofensas publicadas no jornal ao profeta deles. Logo considerado um atentado à liberdade de expressão e à democracia ocidental produziu-se em todo o mundo literalmente um terrorismo mesmo que nenhum grupo terrorista tenha reivindicado o fato, mesmo considerando-o heroico. Um terrorismo que não foi produzido pelo fato mesmo, mas está instaurado hoje em dia pelos governos ocidentais em seu poder de midiatização compartilhado com as grandes mídias que esperam ansiosamente por outro 11 de setembro, como esperam por mais uma morte a cada dia e cada escândalo para colocar na capa do jornal e vender a cada dia, não muito diferente de Charlie Hebdo, talvez se diga.

O terrorismo alardeado a quatro cantos do mundo pelos governos e pela mídia é o grau de sensibilização aos fatos que o poder de midiatização deles produziu em nós ao ponto da morte mais cotidiana adquirir um apelo midiático para além do seu alcance natural, no caso, dos diretamente afetados por ela. Ao se dizer terrorista o levar às vias de fato uma questão religiosa, confunde-se a violência entre as partes envolvidas com a violência de todos contra todos, dividindo quem é Charlie Hebdo de quem não é Charlie Hebdo e tudo que o caso Charlie Hebdo representa, no caso, a radicalização da liberdade de expressão que vivemos cotidianamente com a ofensa se tornando nossa expressão mais comum: em casa, na escola, no trabalho, na rua e mais ainda na internet entre pais e filhos, homens e mulheres, heterossexuais e LGBT, religiosos e religiosos, religiosos e não-religiosos.

Se je ne suis pas Charlie Hebdo hoje não é porque não me compadeça com a dor dos chargista que apenas faziam o que faço agora, demonstrando meu pensamento. Mas porque o que disse um chargista abismado com o fato, de que nunca imaginava que uma charge pudesse matar alguém, deve ser pensado por um fato simples: pois não por acaso a tão defendida liberdade de expressão é a maior arma em defesa da democracia e como toda arma é nociva quando não é bem utilizada. Por bem utilizada, querendo dizer aqui em defesa dos outros e não contra os outros como se faz costumeiramente, pois cada cidadão de um país é outro, é estrangeiro nele quando seus direitos não são atendidos, quando suas vozes não são ouvidas, quando se sentem marginalizados por alguns e pelo Estado como muitos muçulmanos hoje em dia e podem se tornar terroristas quando além não fazerem bom uso de sua expressão, não fazem bom uso de sua razão e matam por aquilo que acreditam.

Para que não matemos por aquilo que acreditamos, incluindo a nós mesmos, a liberdade de expressão não pode defender radicalmente o que pensa, não pode se tornar um quarto poder a que todos devem temer como hoje em dia infelizmente é com o poder de midiatização indiscriminado a que as pessoas estão sujeitas. A liberdade de expressão não pode se tornar, enfim, a liberdade de exclusão da expressão do outro, daqueles que não são Charlie Hebdo. Para lembrar o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, devemos desconstruir a relação que temos com o outro a partir do que pensamos e falamos sobre ele acreditando que nossa voz está com a razão para que uma hospitalidade se torne, senão absoluta, presente em nossas vidas.  

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