O quebra-cabeças infinito da vida

Quando criança, meu pai me deu quebra-cabeças de 1000 peças. Eu tinha entre 5 e 10 anos, não sei ao certo. Nem sei porque ele me deu um. Talvez porque eu gostava de jogos. Ou porque ele me tenha me feito gostar de jogos desde muito cedo ao ponto d'eu preferir jogos a carrinhos e bonecos. Poucos pais, porém, dariam um quebra-cabeças de 1000 peças a um filho se não tivesse algum objetivo, além de quebrar a cabeça dele metaforicamente.

Hoje em dia, muitos pais dão quebra-cabeças aos seus filhos, talvez menos do que o necessário e, em geral, nenhum deles talvez comece com um quebra-cabeças de 1000 peças como fez meu pai comigo. Pois não me lembro de ter tido outros e, se tive, este acabou com todas as lembranças deles. Há, hoje, toda uma graduação de quantidade de peças nos quebra-cabeças que são geralmente de 12, 25, 50, 100, 500, 1000, 2000, 3000, 4000 e 8000 peças. E, talvez, um cuidado de estimular gradativamente as crianças a seguirem estes níveis de modo que elas aprendam a ir do mais simples ao mais complexo.

Não foi este o meu caso e, pelo jeito, não será também o do meu filho de 5 anos, que pede todos os dias para montar o quebra-cabeças novo que comprei, de 2000 peças, que é uma reprodução do afresco Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, pintado entre 1509 e 1510, a pedido do Vaticano, na qual a filosofia enquanto " busca do conhecimento das causas" é representada nele através de vários filósofos, particularmente por Platão e Aristóteles ao centro. Entre este e meu primeiro quebra-cabeças, tenho outro, de 1000 peças, que é uma colagem de várias pinturas de Van Gogh, pintor pós-impressionista do séculXIX que comprei logo após me casar, não sei necessariamente porque nesta época, mas Freud talvez explique.  

É de certo modo costume os quebra-cabeças representarem pinturas de pintores renomados, mais recentemente as de Romero Britto, cuja pintura é já um quebra-cabeças. Mas há também muitos quebra-cabeças que são de fotografias, como era o meu primeiro quebra-cabeças, no caso, a fotografia de uma caravana de beduínos e camelos no deserto em cima de uma duna que dividia a paisagem entre a terra e o céu, a qual carrego ainda viva em minha memória e, senão, em meu pensamento filosófico, tanto quanto o aprendizado que tive ao montar este primeiro quebra-cabeças.

A montagem deste primeiro quebra-cabeças foi feita num "estrelão", como eram chamados os campos de futebol de botão. Não me lembro quanto tempo levei para montá-lo, mas lembro de que o estrelão ficava no chão da sala casa de minha avó materna, onde passava geralmente as tardes depois da escola com meu irmão à espera de nossos pais chegarem. Não lembro de alguém ter me ajudado a montá-lo, pois não sei se alguém gostava tanto do desafio de montá-lo como eu. Pois um quebra-cabeças não é um jogo qualquer que jogamos a dois ou com muitos, cada um competindo com o outro para saber quem é o melhor montador de quebra-cabeças. Ele não nos coloca em disputa deste modo estimulando uma competitividade tão comum entre crianças e jovens hoje em dia. Ele é apenas um jogo de montar, como pensam muitos, e, por isso, não muito importante, nem para crianças, nem para a sociedade, talvez se diga. Afinal, o que há nele de tão interessante? Desdenham, possivelmente, muitos.

Alguns talvez digam, e talvez meus pais pensassem assim, que o quebra-cabeças significa um aprendizado no sentido de que ele ajuda a mostrar como superar as dificuldades da vida. Mas a vida não é um quebra-cabeças, pois não há moldes para a vida. Tão pouco há moldes para a ciência, como pensou Thomas Kuhn ao comparar a teoria científica a um quebra-cabeças em seu livro As estruturas da revolução científica, no caso, um quebra-cabeças da natureza cujas peças o cientista busca montar para construir uma imagem perfeita da natureza que ele chamou de paradigma, a qual, contudo, é desmontada, porém, toda vez que acontece uma revolução científica, a qual estabelece um novo quebra-cabeças como novo paradigma teórico científico a ser superado e assim sucessivamente. Deste modo, cada cientista tentando ser melhor do que outro na montagem do quebra-cabeças que é a natureza. 

Se a teoria científica, contudo, não pode ser vista como quebra-cabeças é porque a natureza não é um molde ou uma imagem como geralmente vemos nos quebra-cabeças e revemos muitas vezes para sabermos onde colocar algumas peças, dependendo da cor ou da sua localização. Tão pouco a vida é um molde ou imagem na qual nos baseamos para melhor nos comportarmos diante desta ou daquela dificuldade. Enfim, o quebra-cabeças não é um jogo que pode nos ajudar a compreender a natureza ou a vida melhor.

Se quisermos pensar o quebra-cabeças como um molde ou imagem da natureza e da vida, é preciso que pensemos que suas peças nunca se encaixam completamente, sempre deixando brechas entre elas, como quando percebemos que uma peça não se encaixa bem na outra e fica aquele espaço vazio entre ambas, o qual muitas vezes, forçosamente, quando não temos paciência, queremos que seja preenchido por aquela peça mesmo que não seja a correta. Por sua vez, que encaixemos estas peças como o impaciente faz sem nos preocuparmos com o que virá depois se a deixássemos ali e que agrupemos todas as demais, não por encaixe perfeito, portanto, mas por proximidade. Cada peça sendo colocada junto a outra e nada mais com aquele espaço vazio inevitável entre ambas, que as une sem percebermos. 

Só assim a natureza e a vida apareceriam para nós em sua desformidade e em sua desconstrução contínua através de um quebra-cabeças, cada ser ou peça deste quebra-cabeças que é a natureza e a vida existindo como uma variação em si, um desvio, uma mudança na forma como vemos a natureza e a vida elas mesmas. Quebra-cabeças, por fim, no qual sempre haverá uma peça faltando, um espaço vazio a ser preenchido por uma peça que ainda vai existir para completar aquela forma da natureza e da vida que nunca veremos completamente em nosso jogo de acertos e erros ao montar o quebra-cabeças infinito da vida.



P.S. Hoje, o meu primeiro quebra-cabeças está desmontado. Montei ele uma vez completamente e o desfiz à maneira de um cientista tentando montá-lo melhor, talvez mais rapidamente. Contudo, no desmonte uma peça foi perdida, mesmo depois de incessantes buscas. Hoje, muitas peças a acompanharam e se perderam, de modo que ele é apenas um monte de peças em um depósito plástico que guardo de lembrança que já não penso mais em reconstruir. Desconstruído, prefiro guardá-lo em minha lembrança e fazê-lo existir agora em minha filosofia a qual pensa, de certo modo, este quebra-cabeças infinito da vida que vi modelada pela primeira vez, talvez, na imagem daqueles beduínos caminhando numa duna sob o sol quente do deserto observando a terra e o céu que compunham aquela paisagem.

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