Ouvindo o canto dos pássaros ao amanhecer...

Ouvir o canto dos pássaros ao amanhecer... A noite se desfazer em dia sob o sol... Quantas vezes já acordei antes de todos acordarem e observei a alvorada... E quantas vezes já me pus a escrever ao canto dos pássaros, ao amanhecer do dia, ao fim da noite com os olhos ainda em brumas, com o corpo ainda inerte, apenas a mente pulsando seus pensamentos a invadir o papel desvairada-mente.

Hoje o papel não se esconde nas brumas na qual o caçava ao menor fragmento de luz. Hoje, o papel reluz na escuridão na tela de um celular, notebook ou computador e ao fim de cada parada na escrita, se interpõe um travessão como limite aos pensamentos, sinalizando uma espera, um momento de espera pelo que virá... a cada segundo.

Assim como a folha de papel mudou e reluz, eu também mudei. Não escrevo mais como antes. Não me descrevo mais a mim mesmo à procura de me fazer presente. Se escrevo agora é para me esquecer. Obliterar um pouco a mente, dispersá-la dos pensamentos que me atormentam. Não um pensamento qualquer, mas todos, de uma só vez, em um só momento. Se escrevo é para não escrever o que penso. Não ter o que pensar. Não ter que me preocupar com meus pensamentos.

Acabo de salvar o que escrevi... E isto é o sinal também de uma mudança. De que as coisas precisam hoje mais do que nunca, precisam ser salvas, pois tendem a desaparecer num piscar de olhos na tela do computador. E mesmo que a salvemos por um instante, elas ainda não estão salvas. Nem nas nuvens, se salvam. Tudo pode ser corrompido.

Por mais que escrevamos para de certo modo cristalizar um pensamento, aquilo que serve de suporte ao pensamento se desfaz, como o próprio pensamento. O pensamento não tem suporte. Não tem algo que o suporte. Eu não suporto o pensamento. Nós não suportamos pensar em determinados momentos.

Olho as horas e são seis da manhã. O tempo passa, o tempo voa, dizemos muitas vezes... apesar de ele sempre está ali. Impassível. As horas passam. Ele não. As horas apenas retêm o tempo por alguns instantes. E nós com ele. Presos ao tempo do relógio, mas não ao tempo em si mesmo. Nunca estamos presos ao tempo. Vivemos o tempo. O tempo é a nossa vida. O tempo vive em nós e nós nele. Não há como nos separarmos do tempo, mesmo que pensemos dar um tempo... do tempo. Se não podemos voltar ao passado, é simplesmente porque não podemos viver novamente o que vivemos. A vida segue seu próprio ritmo, o nosso ritmo, qualquer que seja ele. O ritmo do tempo. Nosso tempo.

Voltar no tempo é uma ilusão, pois mesmo que voltemos, saberemos do tempo do qual partimos e já não viveremos as coisas da mesma forma, porque já sabemos o que aconteceu. Fazemos isto constantemente em nossa mente, em nossos sonhos, ou pesadelos, dependendo do quão bom ou ruim é a lembrança de algo. E sabemos que não é a mesma coisa. O tempo passa e com ele também nós passamos, mudamos com o tempo, pois a vida, o tempo, nós, mudamos, de uma forma muda, inaudível, imperceptível a nós mesmos na maioria das vezes em que não nos olhamos no espelho, a nós mesmos.

No filme As coisas simples da vida, um garotinho tira fotos das nucas das pessoas. Perguntado porque ele faz isto, ele responde que é para nos ajudar a ver a nossa própria nuca, já que não a vemos. Olhar a nuca, penso hoje, depois de muito tempo de ter assistido a este filme e de ter chorado como nunca chorei com outro filme em minha vida, olhar a nuca é olhar para trás, olhar para a vida, olhar para o tempo que passou, mas somente como uma fotografia, uma lembrança, sem que possamos mais viver este momento novamente.

Os cantos dos pássaros já começam a ir embora. O barulho dos carros, motos, ônibus e aviões já começam a atormentá-los. O asfalto já começa enegrecer o dia. Muitos ainda dormem sonhando com o dia de amanhã, como minha esposa e meu filho. O que sonham, não sei. Com que amanhã, tão pouco. A vida não tem amanhã, apenas passado e presente. Sonhar com o amanhã é sonhar com uma vida que não se tem. Se lamentar pela vida que virá, boa ou ruim. Se vivemos no passado e no presente, não vivemos, porém, no futuro, pois não há tempo futuro. O futuro é o tempo que virá, mas não veio ainda. Diferente do passado, que já veio. Está aqui, em nós.

Não se vive no futuro. Mesmo que digamos que viveremos algo este algo não é o que viveremos. Ele é indefinido ainda para nós e só o definiremos quando o vivermos. Como disse, o tempo está em nós. Não podemos nos separar dele. Nem ele de nós. Pensar no que viveremos é pensar numa vida e num tempo que não nos pertence, como se pudéssemos simplesmente nos separar da vida e do tempo e os esperar, olhando-os de soslaio, à espreita do que virá, de quando virá. Quando chegará a hora de vivermos, enfim.

O som da chuva se sobrepõe ao barulho dos pássaros e a natureza retoma o seu lugar em minha mente, em minha vida. A natureza é o tempo que se faz em mim, pois vivemos o seu tempo. Ora ensolarado, ora nublado, ora chuvoso, como agora. Um tempo que não percebemos nas horas que mudam de uma a outra sem nos mudar, apenas empurrar para o outro instante...

As gotas de chuva são os instantes do tempo da vida medida pela própria natureza em seu ritmo, em sua mudança constante. Acima e abaixo, de um lado a outro, de qualquer parte de cima e de baixo, de um lado e de outro. E mesmo de cima ao lado e de baixo ao outro lado, e como quisermos pensar a ordem da natureza, o seu tempo, a vida que nos dispõe, na qual nos dispomos ao seu relento. Ao relento da chuva no qual já não me ponho, mas gostaria de me pôr neste exato momento, sentindo o frio das gotas do tempo a escorrer pelo meu corpo enquanto o sangue pulsa quente dentro dele, como quando criança.

Hoje, como muitos, contento-me apenas em olhar a chuva, o tempo, a vida passando. Apreciar seu som no telhado, no chão, nas bicas, a desordem que a ordem da natureza causa muitas vezes em nossa vida com a chuva. Mas, diferente dos outros, não reclamo disto. A natureza sabe viver, nós não. Vivemos como nos dá na telha e isto muitas vezes não nos basta, não nos é suficiente para dizermos que estamos vivos, que vivemos.

Ensinando sobre a ética tal como a concebe Aristóteles numa faculdade no interior, explicava para os estudantes (e não para “alunos”, devido a etimologia da palavra aluno, “aquele ou aquilo que é desprovido de luz”) que, para Aristóteles, ser ético, isto é, ser alguém de virtude, virtuoso, é conseguir estabelecer através de uma deliberação do pensamento um meio-termo entre a falta e o excesso e agir conforme a este meio-termo, e que isto, como diz Aristóteles, é um dos atributos que nos diferencia dos animais, pois, presumivelmente, os animais, não conseguem pensar e não conseguem estabelecer o meio-termo entre a falta e o excesso. Em outras palavras, não conseguem eles atingir este ponto de equilíbrio entre a falta e o excesso que é a mediania entre um e outro, ponto e mediania estes os quais não por menos, segundo Aristóteles, nos tornaria virtuosos por termos alcançado o bem, ou ainda, o sumo bem, isto é, a felicidade.

Enquanto professor esperava, como tantos, que os estudantes compreendessem isso e demonstrassem esta compreensão numa prova através de suas próprias palavras, seu próprio pensamento como um ateste do que ensinei, do que aprenderam e daquilo que Aristóteles tinha dito, sem que, contudo, eu ponderasse acerca do que Aristóteles tenha dito, apenas expondo seu pensamento. Como nunca esperamos enquanto professores que os estudantes respondam diferente do que queremos, nunca demonstrem algo a mais do que dissemos, mesmo quando é um erro, fui surpreendido quando vi toda a demonstração do pensamento de Aristóteles que tinha exposto ser revirada pelo avesso quando um aluno escreveu em sua prova que a diferença entre nós e os animais é que estes conseguem estabelecer uma mediania entre o excesso e a falta ao argumentar que os animais nunca comem mais do que o necessário. Naturalmente, neste caso, pensando ele no exemplo que demonstrei do pão que uns comem mais do que outros dependendo de sua necessidade, como diz mesmo Aristóteles, em sua Ética à Nicômacos.

De fato, o estudante estava certo. Mas não podia dizer que estava certo em relação a Aristóteles. Mas é este o nosso problema muitas vezes com a vida. Esperamos que ela seja sempre a mais e nunca queremos que ela seja a menos, que a felicidade, como disse Aristóteles, é alcançarmos este meio-termo, que é a própria vida, no fim a cabo, o nosso sumo bem. Mas, como disse o estudante ao seu modo, e também Aristóteles de certo modo segundo o meu pensamento, diferente dos animais, não conseguimos viver a vida no limite de sua necessidade, sem a mais e sem a menos, com que nos basta, independente do quanto nos baste. Vivemos sempre a incerteza do quanto nos é o bastante, o que Aristóteles atribuía às circunstâncias, e não ao homem, como parte de sua natureza, sua vida, algo que talvez pensemos hoje. Neste sentido, se não somos animais, iguais ao animais, não é porque os animais não conseguem pensar como nós, mas porque nós não conseguimos não pensar como eles, não conseguimos deixar de pensar que algo nos falta ou nos excede, que vivemos o meio-termo como eles vivem, que a vida por si só é um meio-termo, o tempo, o ponto de equilíbrio, a corda estendida entre o macaco e o super-homem, Assim como falou Zaratustra, de Nietzsche, na qual não simplesmente nos pomos, mas somos enquanto homens.

A natureza tem seu próprio equilíbrio. A natureza se equilibra ao seu tempo, em sua vida, e nós consigo, mas não em nosso próprio tempo, não na hora que queremos. Ela segue o seu ritmo, o seu tempo, e somente existe o ritmo do seu tempo. O nosso, de nossas horas, é apenas uma parte do dela. Uma ínfima parte na qual vivemos não naturalmente, na qual lamentamos boa parte do tempo termos ou não termos vivido isto ou aquilo na Terra.


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