A Copa do Mundo (do direito à violência) no Brasil

Há quase um século, a Copa do Mundo de futebol é motivo de celebração entre os povos proporcionando momentos memoráveis de conquistas e derrotas, lágrimas de alegria e tristeza, contudo, a celebração que a Copa do Mundo no Brasil tem proporcionando no último ano é a do direito à violência.

De parte a parte do país, as bandeiras verdes amarelas manifestas em sacadas, carros, ruas, foram substituídas em parte pelas bandeiras de revoltas que se alastram brandidas do peito em meio a dores contidas e incontidas pela violência. O "Gigante pela própria natureza" que muitos disseram que acordou anda pelas ruas como um Leviatã que traz em seu rastro a violência pungente de quem é soberano em seu poder e o que vemos em seus passos é o sofrimento de um povo que se acostumou a celebrar o conflito em seu cotidiano e em sua história.

A violência que se vê levantar no Brasil deste modo gigantesco não é, contudo, por causa da Copa do Mundo. É uma violência incrustada em cada cidadão por mãos que os dominam há muito tempo. E se nossas mazelas sociais não são recentes, advêm desde a famigerada e fraudulenta independência, tão pouco é recente o modo como buscamos a resolvê-las. Convivemos com revoltas populares no país há mais de um século e o que estas revoltas nos ensinaram inconscientemente foi que a violência é para muitos a única forma de resolvermos nossos problemas, sejam os problemas de governo, sejam os problemas de nosso cotidiano.

Aprendemos esta violência com o exército imperial, com os coronéis, com os ditadores e aprendemos hoje com as manifestações democráticas dos cidadãos comuns e dos políticos quando de parte a parte, cada um a seu modo, conclamam a violência a se fazer presente. Midiáticos ou não, todos somos um só grito que celebra a dor no corpo e na alma, batendo ou correndo. Somos um só na violência da palmada, do soco, do cassetete, do taser, das pedras, dos pedaços de pau e tudo que vier a nossa frente para que, como as bombas de gás, produzam lágrimas, dores e, com elas, nos sintamos melhor.

A fala que nos diferencia desde há muito tempo dos animais foi suprimida pelo grito escarnido da dor, do ódio, da raiva que nos motiva à violência a qual não por menos também nos diferencia dos animais, pois nenhum deles convive em violência a não ser a nossa. As lágrimas que vemos nos animais são as lágrimas que nós mesmos produzimos assim como a nós mesmos. Nenhum animal sente a dor a não ser na morte para fazer sobreviver o outro de modo que até a morte como maior violência infligida ao outro não é, no animal, para saciar o desejo de violência, mas o desejo de viver.

Aonde chegaremos com esta violência, todos sabemos. Já temos exemplos de sobra na história do nosso país e alhures e há não pouco tempo sentimos todo o furor da violência se manifestar vigorosamente também quando os ditadores, políticos e cidadãos, diziam que somos todos um só, e quem não amasse ser um só país que o deixasse. Muitos deixaram o país para não serem violentados, mas também para não violentar, para não celebrar a violência, a destruição, a morte. Para muitos a ditadura acabou, contudo, ela ainda está em nós como um desejo inexorável pela violência contra as crianças, contras os jovens, contra as mulheres, contra os homossexuais, contra os negros, contra os não-cristãos, contra quem torce e quem não torce para o Brasil na Copa do Mundo de 2014.

Para fugirmos a esta ditadura hoje que sentimos tão presente com a violência manifesta de parte a parte em nosso cotidiano, em nós e contra nós, não basta, contudo, sairmos ou sermos expulsos do país, não basta barganharmos pela democracia como fizeram os políticos com os generais, livrando-os de todo o mal, amém, não basta ir pra rua manifestar sua dor com a dor dos outros, não basta destruir, esmurrar, chorar, matar. O desejo de violência clama por mais violência. A violência como a morte tem como seu principal atributo nos fazer padecer, mesmo quando não somos nós que violentamos, mesmo que não sejamos nós a morrer. A luta traz sempre em seu íntimo o (eu) luto e o (eu) luto sempre enseja uma nova luta. A democracia que temos não existe e não existirá por muito tempo se em nós é ainda o desejo de violência que celebramos.

A Copa do Mundo não é para celebrarmos a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, o nosso país e sua corja de assassinos, covardes, estrupadores e ladrões, a violência do povo, nossa polícia e televisão, nosso governo, nosso Estado, que não é nação, a juventude sem escola, as crianças mortas, nossa desunião, Eros e Thânatos, Persephones e Hades, nossa tristeza, nossa vaidade.

Não é para comemorarmos como idiotas cada feriado, os mortos nas estradas, os mortos por faltas de hospitais, nossa ganância, difamação, os preconceitos, o voto dos analfabetos, a água podre, todos os impostos, queimadas, mentiras e sequestros, nosso castelo de cartas marcadas, o trabalho escravo, nosso pequeno universo, toda hipocrisia e toda afetação, todo roubo e toda a indiferença, A FESTA DA TORCIDA CAMPEÃ. Não ter a quem ouvir, não ter a quem amar, alimentar a maldade, machucar o coração, celebrar a nossa bandeira, nosso passado de absurdos gloriosos, tudo que é gratuito e feio, que é normal, cantarmos juntos o hino nacional, pois a lágrima é verdadeira, nossa saudade, nossa solidão, a inveja, a intolerância, a incompreensão, a violência, esquecer a nossa gente que trabalhou a vida inteira e agora não tem mais direito à nada, A ABERRAÇÃO DE TODA NOSSA FALTA DE BOM SENSO, NOSSO DESCASO POR EDUCAÇÃO, celebrar o horror e a estupidez de quem cantou e de quem reescreveu esta canção.*


Neste sentido, contra o direito à violência do governo e dos sem governo,

Venha, Copa do Mundo no Brasil 2014,
nosso coração está com pressa,
quando a esperança está dispersa,
só a verdade nos liberta, chega de maldade e ilusão.

Venha, Copa do Mundo no Brasil 2014,
o amor tem sempre a porta aberta,
e vem chegando a primavera, nosso futuro recomeça:
venha, que o que vem é PERFEIÇÃO.


A Copa do Mundo, com certeza, não é a perfeição, mas o momento de não violência que ela produz entre várias nações de diferentes crenças e políticas é aquilo que almejamos sempre em nosso cotidiano.

* A música reescrita no caso é Perfeição, do Legião Urbana, que pode ser conferida no sentido original por assim dizer no vídeo abaixo.



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