Os Filhos da Anistia

Nasci em 1979, ano em que foi publicada no Brasil, ainda em Regime Ditatorial, a Lei da Anistia que concedeu o "perdão" a todos aqueles que cometeram o "crime político" de ser contra a ditadura, com exceção dos "terroristas" e "assassinos", mas também a todos aqueles que cometeram crimes políticos a favor do regime, incluindo militares torturadores e assassinos.

Nascido neste ano, a memória que tenho dele é a de livros, imagens e sons ecoados desta época muito tempo depois, os quais me fizeram ter, mais do que uma consciência histórica do período ditatorial, uma empatia particular com este ano emblemático, principalmente a partir de uma imagem que ele representa pra mim, no caso, a imagem de poder voltar para casa, daqueles que puderam voltar para casa, criminosos políticos fugidos ou expulsos do Brasil pelo "Ame-o ou deixe-o" de todos que eram a favor do regime, de pessoas que sobreviveram à ditadura, mas também que não sobreviveram e, enfim, puderam descansar em paz, onde quer que estivessem, perdidas em valas ou rios onde colocaram seus corpos. Uma imagem que, posso dizer, moldou minha vida e meu pensamento social, político e filosófico devido a tantas idas e voltas para casa, tantas vezes requerendo este direito que é o símbolo mor da liberdade humana, no caso, de ir, mas, principalmente, de vir, de voltar, voltar atrás, no caminho que tomou, nos pensamentos que teve, nas ações que fez, se arrepender, perdoar, não o outro, mas a si mesmo, desculpar-se, literalmente, o que este ir e vir se tornou tudo o que tento expressar filosoficamente e ainda não consegui a contento.

Esta imagem de poder voltar para casa, a do filho pródigo, obviamente me fez também ter uma empatia com todos que puderam voltar: Herbert de Sousa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e todos aqueles que, não tendo fugido ou sido expulsos, puderam se dizer em casa novamente. Pessoas que vivenciaram a dor de não ter casa, mesmo estando em casa, que acobertaram os criminosos políticos que eram e não eram, kamchatkas, fugidos ou expulsos de si mesmos pela ditadura à espreita em todo lugar, principalmente em suas consciências. Pessoas assim como meus pais que não se exilaram no exterior, mas que me fizeram ouvir o som dos exilados de lá - Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil - e dos exilados aqui - Raul Seixas, Elis Regina, Milton Nascimento, som que ecoou em mim desde a infância suas dores, indignações e manifestos contra toda forma de poder opressor que, em minha mente, se resume poeticamente na música O bêbado e a equilibrista, de Elis Regina cuja voz, nesta música, Ã© o instrumento que expressa toda a dor e esperança dos exilados, aqui e fora, bem como pela qual se expressam todos os danados em suas almas vivendo a dor e a esperança de voltar para casa algum dia onde quer que estejam. Elis que, não por menos, é mais do que qualquer outra pessoa deste período a voz e o corpo, o instrumento, enfim, a partir do qual todos os torturados pela ditadura se expressam, inclusive acobertados em seu nome a evocar Eles.

Além da empatia criada com todos os exilados a partir desta cantora e da música em particular O bêbado e a equilibrista, que bem poderia ser dita no plural, "Os bêbados e as equilibristas", esta música me faz lembrar do irmão do Henfil Herbert de Sousa, o qual conheci em uma reportagem, aos 17 anos, às vésperas do vestibular, que me fez cursar Ciências Sociais na UECE e, desde então, foi o bolinho de Proust a me fazer reviver toda a época em que nasci e antes de meu nascimento em seus mais intensos momentos: o Golpe de 64 - que foi sobretudo um golpe, uma ação cujo único objetivo é produzir dor com sua força destruidora, neste caso, militar, isto é, o direito de uma ação violenta por parte dos militares com o fim de produzir dor e destruir todos os seus opositores, em resumo, o direito à violência do Estado, literalmente, nas mãos dos militares a golpear a todos impunemente - o Maio de 68 - o contra-golpe que os militares evitaram com um golpe mortal, o Ato Institucional Nº 5, o direito não apenas de violentar, mas de matar todos que eram contra o regime - e a Lei da anistia, em 1979 - o golpe de misericórdia dos militares em sua tentativa de aplacar nossa dor e sofrimento causado por eles próprios, inclusive a mim, que me considero filho da ditadura, em particular deste ano, assim como muitos que nasceram nele, que são filhos dos anistiados, não simplesmente dos que partiram, mas também dos que ficaram, que sentiram a dor do parto, de ter de partir, mas voltaram, puderam voltar, (re)nasceram como eu, comigo, amigos com os quais partilho e compartilho a dor do parto, de partir e sua esperança bêbada e equilibrista de sempre poder voltar ainda que in memoriam.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.