Uma prova de amor antes de partir


O título desta postagem é a junção dos títulos de dois filmes: Uma prova de amor, de Nick Cassavetes, e Antes de partir, de Rob Reiner, dois filmes que retratam a morte de um modo que as pessoas não costumam ver e que é, não por acaso, o problema central do diálogo de Sócrates com seus discípulos no texto Fédon, de Platão e talvez a maior defesa da morte como libertação da vida e a implicação inimaginável que isto representa, o direito de morrer.
Em seu diálogo Fédon, Platão coloca Sócrates frente a frente com a morte, mas também todos os seus discípulos e, porque não dizer, a própria filosofia e o resultado é a defesa mais apaixonante que existe de ser filósofo, sem tergiversações. Ser filósofo, bem entendido, e não o que é a filosofia, apesar de que ele o diga, mas de modo a nos fazer perceber que a filosofia não é uma simples palavra ou um simples conhecimento, e sim, uma vida, como dirá Deleuze muito tempo depois sobre a imanência. Uma vida, no caso, que é a própria vida de Sócrates naquele momento, preso à espera de se consumar sua condenação à morte por perverter a juventude e afrontar os Deuses. Condenação que aparece logo no início do diálogo como tema, mas não mais um condenação dos homens contra ele, mas dos próprios Deuses que nos fazem viver sem o direito de morrer, ou de desejar a própria morte, o que faz Cebes perceber aquela que será a contradição inerente a todo o diálogo posterior ao perguntar:

Como podes dizer, Sócrates, que não é permitido fazer violência contra si mesmo, e, por outro lado, que o filósofo não deseja nada melhor do que poder seguir aquele que morre? (Platão, 1983, p. 62, Os pensadores)
O que Símias assevera,dirigindo a Sócrates esta contradição e acusação:

Mas Sócrates - acudiu Símias -, segundo penso, há também muita razão nos dizeres de Cebes: de fato, com que intenção homens incontestavelmente sábios haveriam de fugir de donos que valem mais do que eles próprios, e sem grande cuidados, se afastariam deles? Meu pensamento também é que, além disso, a objeção de Cebes se dirige contra ti mesmo, pois é da mesma forma que, sem muito pesar, suportas a contingência de abandonar-nos - acabaste de convir nisto! - que são os Deuses. (Platão, 1983, p. 63, Os pensadores)

A questão é extremamente complicada porque ao mesmo em que Sócrates defende que os homens não têm o direito de desagradar aos Deuses infligindo a si mesmos a morte contra a vontade daqueles que são como que seus "proprietários" e não podem admitir que estes façam algo sem o seu consentimento, Sócrates se encaminha justamente para isto, pois deve tomar a cicuta, um veneno, no dia seguinte para cumprir sua condenação. E, o que é pior para seus discípulos, sem se ressentir por deixar a vida, seus discípulos, mesmo que desagrade aos Deuses. O que Sócrates, com a sabedoria do filósofo cuja "única ocupação consiste em preparar-se para morrer", refuta dizendo simplesmente que:
Sim, confesso-o, Símias e Cebes: eu cometeria um grande erro não me irritando contra a morte, se não possuísse a convicção de que depois dela vou encontrar-me, primeiro, ao lado de outros Deuses, sábios e bons; e, segundo junto a homens que já morreram e que valem mais do que os daqui. (Platão, 1983, p. 64, Os pensadores)

A convicção de Sócrates do que há depois da morte é a convicção de uma "Ideia" que supera toda e qualquer contradição no pensamento, no caso, entre a vida e a morte, e da qual é uma "síntese dialética". E esta ideia convicta e legítima é, no caso de Sócrates, sobretudo, a filosofia que garante posto que

o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto! 

A filosofia é, neste sentido, o que garante a esperança diante da morte, de que ela não é algo tão ruim quanto pensamos durante a vida, ou ainda é, o que forço a dizer, justamente a prova de amor antes de partir, a qual dificilmente aceitamos posto que nem sempre somos filósofos, ou ainda, porque, como diz Sócrates:

Como parece aparentemente desconcertante, amigos, isso que os homens chamam de prazer! Que maravilhosa relação existe entre a sua natureza e o que se julga ser o seu contrário, a dor! (Platão, 1983, p. 60, Os pensadores)
Esta prova de amor antes de partir, a filosofia, por assim dizer, é o que sintetiza estes dois filmes numa análise, pois me pareceu surpreendente como ambos, de modo diferentes, abordam de modo tão sublime este tema indiscutível, a morte, em tudo que ela representa. Mais surpreendente porque se ambos os casos mostram a morte em dois momentos opostos por assim dizer: na juventude e na velhice, demonstrando que a morte não escolhe idade, a filosofia também não escolhe de modo que em qualquer uma das idades é possível ter esta convicção legítima de que a morte não é um mal, mas talvez seja um bem em determinado momento.
Curiosamente, no mesmo fatídico dia que deparei com a morte desta forma fictícia por duas vezes seguidas, tinha lido um artigo sobre o direito de eutanásia ser estendido a jovens na Bélgica o que me fez ver com mais atenção ainda ao filme Uma prova de amor, o qual nos faz ter uma falsa impressão sobre o direito ao corpo defendido nele, não é simplesmente o da menina em ceder partes dele à irmã, mas desta em relação à própria doença que a levará fatalmente à morte. E, neste artigo, uma defesa da eutanásia para os menores de idade feita por um médico chama a atenção quando ele diz:

"Todos os especialistas pediátricos consultados (para a elaboração da proposta) insistiram sobre a extraordinária maturidade que as crianças tendem a adquirir quando enfrentam uma doença letal", afirmou Mahoux, médico de formação. (Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/06/belgica-debate-estender-direito-a-eutanasia-a-criancas.html)
O que os médicos chamam de "maturidade" é senão aquilo que os filósofo chamam de sabedoria, ou ainda, a própria filosofia enquanto "amor à sabedoria", um amor e uma sabedoria que defende não a morte como pensamos, mas a vida de um modo que não pensamos depois justamente da morte, o que  direito de morrer em determinado momento é uma prova de amor, não a si mesmo e tudo aquilo que se considera "seu", como de sua "propriedade", mas uma prova de amor ao "outro" e tudo que este "outro" representa, a prova de que realmente o ama antes de partir.

UMA PROVA DE AMOR

 

ANTES DE PARTIR

 

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