O alienista e a cura gay


A absurda proposta defendida como "cura gay" por aqueles que não aceitam a diferença em todos os seus aspectos me fez lembrar o filósofo Foucault no que diz respeito à sua crítica à autoridade dos médicos em diagnosticar os "loucos" ou mesmo em dizer quem é e quem não é "louco", bem como da autoridade do Estado em fazer isso. O motivo desta lembrança parece óbvio, pois segundo o que defende o Excelentíssimo Deputado Marco Feliciano alguns psicólogos estão sendo impedidos de diagnosticar os "homossexuais" de modo que é dever do Estado defender o "direito humano" dos psicólogos fazerem isso. Malgrado eu não saber exatamente porque isto foi parar na Comissão dos Direitos Humanos (alguém já se perguntou isso?), o que se requer para estes psicólogos é a autoridade de diagnosticar e dizer quem é e quem não é gay no intuito de tratá-lo como se outrora fazia com os loucos, o que esta autoridade deve ser legitimada pelo Estado.


Neste sentido, a homossexualidade está sendo tratada por estes psicólogos defendidos pelo Deputado Marco Feliciano e tratada pelo próprio deputado como era tratada a lepra, as doenças venéreas na era clássica segundo Foucault, isto é, como uma "nova encarnação do mal, um outro esgar do medo" contra os quais se requer "mágicas renovadas de purificação e exclusão". Um exemplo disto pode ser visto nesta emblemática citação de Foucault logo no início de seu livro A história da loucura, quando mostra como o leproso era alguém ao mesmo tempo punido e abençoado por Deus tal como os homossexuais para algumas pessoas hoje em dia:

Meu companheiro, diz o ritual da Igreja de Viena, apraz ao Senhor que estejas infestado por essa doença, e te faz o Senhor uma grande graça quando te quer punir pelos males que fizeste neste mundo.(p.6)

Não por acaso, observa ainda Foucault, os doentes venéreos e os loucos ocuparão os mesmos espaços criados pelos governos da época antes destinados aos leprosos, pois é o mesmo modo de exclusão que será praticado a eles, mas o tratamento aos poucos vai se diferenciando, já que apesar de excluída, a doença venérea começa a ser tratada "de bom ou mau grado" nos hospitais e novos tratamentos surgem a partir disto o que leva Foucault a constatar um "Fato curioso":

Fato curioso a constatar: é sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constitui no século XVII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão. (p. 8, negritos meus)

Se as doenças venéreas foram diagnosticadas, tratadas e acolhidas como uma "cousa médica" com vários tipos de tratamentos em boa parte pouco severos, os loucos que os sucederam enquanto "mal" não foram tratados do mesmo modo, sendo que o mais simples desses modos, foi serem "escorraçados" das cidades, principalmente naquilo que ficou conhecido como "Nau dos loucos" (Narrenschiff), apesar de alguns serem tratados em hospitais, e o mais complexo os "choques elétricos", além do entorpecimento por remédios.

Todavia, se desde o surgimento da psicoanálise na década de 60, o tratamento da "loucura" tem livrado o "louco" cada vez mais dos hospícios e de tratamentos severos destes espaços sociais de exclusão, dificilmente eles escapam de um "espaço moral de exclusão", que não está presente num espaço físico qualquer, mas que são "valores" e "imagens" aderidos à personalidade dos "loucos" como se aderiram aos leprosos e são o que permanecem mesmo que os hospícios se esvaziem como os leprosários, como diz Foucault:


Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra [a loucura e a homossexualidade, digamos] e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personalidade do leproso... (p. 14)

As consequência disto são muitas, principalmente no que diz respeito à filosofia como Foucault demonstra, mas o mais absurdo de tudo isto é que conforme este espaço moral de exclusão se instaura sob a autoridade de determinadas pessoas, no caso, psicanalistas e psicólogos, esta pessoa passa a ter o poder de considerar qualquer pessoa doente "louco" ao ponto de acontecer aquilo que Machado de Assis brilhantemente em sua obra O Alienista, na qual um psicanalista, o alienista, ao começar a observar os hábitos das pessoas numa pequena cidade começa a considerar todos loucos e a prender todos eles. O que se o Alienista for tratar de modo médico alguém como "homossexual", segundo a defesa do deputado Marco Feliciano, pode acontecer o mesmo e, que ironia, até o digníssimo deputado Feliciano por conta do seu hábito suspeito de passar gel no cabelo pode ser considerado "gay", diria o Alienista.


Donde por fim, poderíamos pensar na seguinte charge: Psicólogos correndo atrás do deputado Feliciano que grita: - Eu não sou gay! (Quem souber desenhar pode ilustrar este artigo enviando o desenho para meu e-mail: arkhephylosophia@gmail.com.)

P.S. Caso alguém deseje ler a obra “O alienista”, de Machado de Assis: http://www.fuvest.br/download/livros/alien.pdf ou ainda assista ao vídeo baseado na obra.

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