Ser mulher...
Supondo que a verdade seja uma mulher seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrÃvel seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar – e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está de pé. (NIETZSCHE, 2005, p. 7)
Se levarmos em conta a suspeita de Nietzsche na citação acima, podemos dizer que o livro organizado por Maria LuÃsa Ribeiro Ferreira, O que os filósofos pensam sobre as mulheres (1998), fundamento a sua suspeita e faz coro a inabilidade dos homens em conquistar uma dama, ao mesmo tempo que, como Nietzsche, coloca a nós, filósofos, principalmente, mas qualquer a homem, a condição de repensar todo o dogmatismo filosófico acerca da mulher, que a cerca de todos os lados e há muito tempo.
Que os filósofos, desde Parmênides pensaram e se detiveram no pensamento do ser, e antes dele na arkhé de todos os seres, isto não é novidade para uma pessoa afeta à filosofia. Todavia, sob o pensamento deste ser e sua arkhé, nós, filósofos, homens, geralmente ocultamos a mulher do pensamento da mesma forma como o nada se oculta a ele, e consequentemente à existência, conforme a relação entre pensar e ser estabelecida por Parmênides. Assim, do mesmo modo que, para Parmênides, o nada somente existe como ausência do ser, como um não-ser, como uma não-existência, a mulher também não está presente, não é e não existe, num primeiro momento, ao pensamento dos filósofos, como atesta Maria LuÃsa ao pedir para que os colaboradores do seu livro repensem seus filósofos “a partir de uma chave para eles pouco usual”, no caso, a condição feminina, como ela diz na apresentação do livro:
...aos colaboradores foi colocado o repto de repensarem os “seus” filósofos a partir de uma chave para eles um pouco usual. E as surpresas foram grandes pois, tratando-se de especialistas, poucos conheciam o que os seus autores tinham escrito sobre a condição feminina. (...) Numa primeira incursão a resposta era quase sempre negativa – ou não tinham pensado nisso, ou o que pensavam era quer secundário, quer irrelevante, quer banal. (FERREIRA, M. 1998, p. 9. Grifos meus)
Que os filósofos não tenham pensado nisso, a condição feminina, ou que tivessem pensado nisso como algo secundário, irrelevante, banal, isso demonstra a relação entre a mulher e o nada ao pensamento. Não porque o pensamento não se deteve nela simplesmente, mas porque “ela”, “isso”, não pudesse ser pensada, da mesma forma que o nada, o não-ser, o não-existente, diz Parmênides, não pode ser pensado, pois se o fosse, ele mesmo já seria algo. E que, todavia, se ela é pensada como algo secundário, irrelevante, banal, da mesma forma como o nada é também “pensado” pelo pensamento, isso demonstra que ela, tal como o nada, não tem valor para o pensamento e como “ser”.
Diante disso, podemos dizer que ser mulher, em primeiro lugar, é estar submetida a toda uma lógica do pensamento que a nadifica e a desvaloriza diante do próprio pensamento. Este, por sinal, um dos principais estereótipos impingido à s mulheres pelos filósofos, a de que elas são incapazes de pensar, ou mesmo, de que nelas, ressaltar-se-ia mais a emoção do que a razão, motivo pelo qual seriam consideradas um “sexo frágil”. E que nos faz pensar num questionamento importante de Maria LuÃsa: “Sendo a filosofia um exercÃcio intelectual que exige certos requisitos, aceitaremos nela a determinação do sexo?”
Malgrado a resposta a este questionamento reafirmar a condição feminina, é inegável que sim, o sexo é uma determinação entre outras como os contextos histórico, social e psicológico do exercÃcio intelectual filosófico, pois se assim não o fosse, porque, afinal, este outro questionamento de Maria LuÃsa: “Será que o facto de ser mulher e de ser filósofa dá cunho especial aos textos produzidos?” Isto porque somente podemos levantar esta questão pelo fato do homem ou do sexo masculino ter determinado de alguma forma o pensamento e a expressão deste mesmo de modo escrito como uma lei da natureza. Contudo, também podemos dizer que não e que o pensamento é, como dizia Platão, incorpóreo, puro, imaterial e imutável, e o ser é, sobretudo, uma essência totalmente distinta de uma aparência, uma alma diferente de um corpo, de modo que o sexo não a determinaria. Apesar de que o próprio Platão também afirma que o ser, isto é, a alma ou a essência manteria uma relação com o não-ser, o corpo, a aparência e seria determinada por este em vida negativamente.
De um modo ou de outro, o sexo é determinante no exercÃcio filosófico, mesmo que se envolva e rodeie o pensamento com a pureza de uma ideia jamais vista, apenas pensada platonicamente por uma alma em si mesma apartada do corpo. Mas para responder afirmativamente de que modo o sexo determina o exercÃcio intelectual ou a filosofia propriamente, seria preciso inquerir os próprios filósofos, por exemplo, como fazem os autores de O que os filósofos pensam sobre as mulheres. E, principalmente, com as ressalvas que Maria José Vaz Pinto faz acerca de Platão e Aristóteles em seu texto O que os filósofos pensam sobre as mulheres: Platão e Aristóteles, isto é, de uma releitura destes a partir da compreensão deles mesmos, no sentido “de ler Platão e Aristóteles à luz de uma compreensão adequada, ou seja, de uma hermenêutica correcta do que significa o que diz Platão em Platão e do que significa o que diz Aristóteles em Aristóteles.” O que isto serve para todos os filósofos em questão, sem exceção.
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