Ser... humano
O macaco e a faca
Afobado, um homem chega à casa de um dervixe, força a porta e grita:
- Rápido! Rápido! É preciso fazer alguma coisa! Um macaco acaba de pegar uma faca!
- Calma - diz-lhe o dervixe. - Contato que não seja um homem...
Jean-Claude Carriére, O cÃrculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro, p. 95.
A história ilustra bem uma situação relatada por minha esposa que escapou de ser assaltada ao suspeitar de um homem com uma bicicleta que lhe parecia suspeito e que quase assaltou uma garota com uma faca que estava mais à frente num cruzamento. Bem como outra situação em que uma mulher na parada de ônibus comigo se surpreendeu ao ver um filhote de gato estar comendo pedaços de papel laminado na tentativa de encontrar alguma comida, sobre o qual fiz o seguinte comentário: "Ele estaria melhor no mato do que no asfalto, pois lá ele encontraria alguma comida."
O que esta história tem em comum com as duas situações descritas abaixo demonstra de certo modo o que é ser humano.
Dervixe turco |
O macaco, para ser sucinto, como todo animal tem o poder de matar e se utiliza de qualquer instrumento para isto, o que, nisto o homem não se diferencia de qualquer animal quando encurrala uma presa, é mesmo esse um instinto básico de sobrevivência biológica: matar para sobreviver, a morte alimentar a vida. E mesmo os vegetarianos não podem fugir deste princÃpio biológico básica quando evitam comer um animal por considerá-lo um ser vivo, pois a planta, ainda que não seja um animal, isto é, um ser "animado", com "movimento", ela ainda é um ser vivo. Ainda é a mesma necessidade que alimenta o herbÃvoro e o carnÃvoro desde os tempos dos dinossauros, o que diferencia os homens dos demais seres vivos é, talvez, justamente o sentimento que muitos vegetarianos tomam como justificativa para não comerem carne, qual seja, a crueldade investida pelo poder do homem em tornar o animal seu "objeto" do seu consumo, tornando-se assim "sujeito", um "ser humano" propriamente.
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Cena do filme "2001: Uma odisséia no espaço" |
Diante disto, se pensarmos no filhote de gatinho comendo o papel alumÃnio de uma quentinha, podemos perceber que toda a humanidade busca e fugir das temerosidades existentes na natureza, donde toda a fobia animal existente na sociedade independente do amor que muitos possam sentir por eles. A natureza, de modo geral, é algo nocivo ao ser humano que a repudia criando estoutra natureza, a "social", considerada uma "segunda natureza" por muitos filósofos e que se confunde como a ideia de "cultura". No mato, um gato sobreviveria, ou não, tranquilamente. Nós também. Mas sob condições que consideramos limitadas para a nossa existência, pois, seguindo a comparação linguÃstica, que é também uma questão existencial, uma coisa é "viver", outra é "sobreviver", o que este prefixo "sobre" denota, ao contrário do que parece, uma inferioridade em vez de uma superioridade.
Se a sobrevivência na selva ou no mato, a nós, seres humanos não é algo aprazÃvel, assim como aos animais, sendo a vivência na cidade algo melhor, isto se deve principalmente ao medo que o ser humano sente pelos perigos na natureza, o que, mesmo o homem mais "radical" do planeta não desconsidera, apenas busca evitá-lo, com cálculos e mais cálculos, isto é, de um modo extremamente racional e metódico, evitando os riscos de acidente e uma morte provável. A natureza, neste sentido, e o animal, por excelência, é superior a nós causando temor em nossas vidas e uma insegurança permanente em nosso ser e, mesmo que estejamos em nossas selvas de pedras, esta insegurança se aloja em nós,pois o medo que sentimos diante da natureza é o que sentimos diante de tudo que nos é superior. E na sociedade, superior são aqueles que detém as armas, material ou simbolicamente, obtendo assim poder sobre nossa vida e nossa morte, como um assaltante na esquina, que é um ser humano e não um macaco, mas seria melhor se fosse um, pois não nos traria tanto medo.
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