Ser... humano

agosto 18, 2012
O macaco e a faca

Afobado, um homem chega à casa de um dervixe, força a porta e grita: 

- Rápido! Rápido! É preciso fazer alguma coisa! Um macaco acaba de pegar uma faca!
- Calma - diz-lhe o dervixe. - Contato que não seja um homem...
Jean-Claude Carriére, O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro, p. 95.

A história ilustra bem uma situação relatada por minha esposa que escapou de ser assaltada ao suspeitar de um homem com uma bicicleta que lhe parecia suspeito e que quase assaltou uma garota com uma faca que estava mais à frente num cruzamento. Bem como outra situação em que uma mulher na parada de ônibus comigo se surpreendeu ao ver um filhote de gato estar comendo pedaços de papel laminado na tentativa de encontrar alguma comida, sobre o qual fiz o seguinte comentário: "Ele estaria melhor no mato do que no asfalto, pois lá ele encontraria alguma comida."

O que esta história tem em comum com as duas situações descritas abaixo demonstra de certo modo o que é ser humano.

Dervixe turco
Em primeiro lugar, um temor e uma afobação pelo presença animal, seja exteriormente, seja em nós mesmos. Tal temor e afobação se explica obviamente quando se trata de um animal cuja superioridade em relação a nós nos atemoriza, mas não em relação à utilização de um objeto que ele, porventura, nem saiba o usar. Por isso a calma do dervixe sabiamente, pois se pararmos para pensar nas cenas iniciais do filme "2001: uma odisséia no espaço", de Stanley Kubrick, podemos perceber que se somos descendentes biologicamente dos macacos como observou Darwin, a nossa humanidade começa quando um simples pedaço de osso passa a ser um instrumento de poder em nossas mãos no que diz respeito à vida e a morte tal como no filme e o seu breve voo no espaço a possibilidade dos voos de uma nave espacial.

O macaco, para ser sucinto, como todo animal tem o poder de matar e se utiliza de qualquer instrumento para isto, o que, nisto o homem não se diferencia de qualquer animal quando encurrala uma presa, é mesmo esse um instinto básico de sobrevivência biológica: matar para sobreviver, a morte alimentar a vida. E mesmo os vegetarianos não podem fugir deste princípio biológico básica quando evitam comer um animal por considerá-lo um ser vivo, pois a planta, ainda que não seja um animal, isto é, um ser "animado", com "movimento", ela ainda é um ser vivo. Ainda é a mesma necessidade que alimenta o herbívoro e o carnívoro desde os tempos dos dinossauros, o que diferencia os homens dos demais seres vivos é, talvez, justamente o sentimento que muitos vegetarianos tomam como justificativa para não comerem carne, qual seja, a crueldade investida pelo poder do homem em tornar o animal seu "objeto" do seu consumo, tornando-se assim "sujeito", um "ser humano" propriamente.

Cena do filme "2001: Uma odisséia no espaço"
Tornar-se sujeito ou ser humano propriamente é justamente a capacidade que nós temos de percebermos que temos um poder de vida e de morte sobre os "outros", o que isto pode ser representado por um simples pedaço de osso como no filme de Stanley Kubrick ou, ainda melhor, por uma faca, este instrumento que demonstra com um só manejo a dupla construção social do ser humano que pode utilizá-la como instrumento vital para sua sobrevivência, mas também como instrumento de poder mortal sobre os outros. Eis porque é bem mais temeroso um homem com um faca do que um macaco, como pensou o dervixe. Podemos dizer que o macaco apenas usaria a faca para se defender ou para cortar alguma fruta que se lhe entregasse à mão, mas não conseguimos imaginá-lo usando a mesma faca para obrigar um homem a pegar esta mesma fruta, abri-la e lhe servir simplesmente porque ele está com uma faca. Ou seja, a faca, de utensílio doméstico, jamais passaria a uma arma, a menos que fosse um homem a manejá-la. Por isso, por mais que Darwin esteja certo quando a nossa descendência biológica em relação ao macaco, ser humano ainda é ser algo diferente de um macaco, para o bem e para o mal. E a natureza nos dá prova o bastante disto, já que nenhum outro animal, a não ser em filmes de desenho animado aparece tornando os demais seres em "objetos" e se tornando "sujeitos".

Diante disto, se pensarmos no filhote de gatinho comendo o papel alumínio de uma quentinha, podemos perceber que toda a humanidade busca e fugir das temerosidades existentes na natureza, donde toda a fobia animal existente na sociedade independente do amor que muitos possam sentir por eles. A natureza, de modo geral, é algo nocivo ao ser humano que a repudia criando estoutra natureza, a "social", considerada uma "segunda natureza" por muitos filósofos e que se confunde como a ideia de "cultura". No mato, um gato sobreviveria, ou não, tranquilamente. Nós também. Mas sob condições que consideramos limitadas para a nossa existência, pois, seguindo a comparação linguística, que é também uma questão existencial, uma coisa é "viver", outra é "sobreviver", o que este prefixo "sobre" denota, ao contrário do que parece, uma inferioridade em vez de uma superioridade.

Se a sobrevivência na selva ou no mato, a nós, seres humanos não é algo aprazível, assim como aos animais, sendo a vivência na cidade algo melhor, isto se deve principalmente ao medo que o ser humano sente pelos perigos na natureza, o que, mesmo o homem mais "radical" do planeta não desconsidera, apenas busca evitá-lo, com cálculos e mais cálculos, isto é, de um modo extremamente racional e metódico, evitando os riscos de acidente e uma morte provável. A natureza, neste sentido, e o animal, por excelência, é superior a nós causando temor em nossas vidas e uma insegurança permanente em nosso ser e, mesmo que estejamos em nossas selvas de pedras, esta insegurança se aloja em nós,pois o medo que sentimos diante da natureza é o que sentimos diante de tudo que nos é superior. E na sociedade, superior são aqueles que detém as armas, material ou simbolicamente, obtendo assim poder sobre nossa vida e nossa morte, como um assaltante na esquina, que é um ser humano e não um macaco, mas seria melhor se fosse um, pois não nos traria tanto medo.

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