Invictus: um time, uma nação

julho 18, 2012
Bola ao vento, chutada com força, que passa entre as traves e cria um dos momentos mais emocionantes da história recente africana e do mundo, quando a África do Sul foi campeã da Copa do Mundo. Não, não me refiro à recente Copa do Mundo da África de futebol, mas a mais importante de todas as copas até hoje, a Copa do Mundo de Rúgbi de 1995, sediada na África do Sul e vencida seleção sul-africana de rúgbi conhecida como Springboxs e suas lendárias camisas verde-ouro.


O filme é de 2009 e não por acaso foi passado ontem no Cine Espetacular, do canal SBT, pois hoje é 18 de julho, o dia do aniversário de Mandela, ou simplesmente, o Dia de Mandela, a quem dedico meus humildes parabéns, e a quem o SBT quis também parabenizar, de certo, bem como a todos os brasileiros com essa história exaltante de um time, uma nação.

Fazia tempo que queria assisti-lo, até mesmo comecei a assistir on-line, mas parei. A história sempre me pareceu interessante e é um daqueles filmes que você não esquece fácil, mesmo não o tendo assistido, e nos faz pensar não simplesmente no quanto o esporte pode engrandecer uma nação com seus títulos, como se pensa muito no Brasil, ou como ele pode ser o futuro de milhões de crianças que almejam ser jogadores de futebol, jogar num time grande, da Europa, se possível, e casar com um mulher branca, se ele for negro... Não, não é esse tipo de pensamento torpe difundido aos montes pelos meios de comunicação nacional. Basta assistirmos ao filme para pensarmos no esporte como algo mais visceral do que se pensa comumente.

Pra começar, o que é rúbgi? Uma definição dita no filme por um dos seguranças brancos de Mandela a outro segurança negro parece ser interessante, principalmente por sua diferença em relação ao futebol do qual descendente. Diz ele: "O futebol é um jogo de cavalheiros jogado por selvagens enquanto o rúgbi é um jogo de selvagens jogado por cavalheiros." A conotação e a denotação desta frase é clara em seu jogo de palavras tanto quanto em seus jogos aludidos e nos deve fazer pensá-lo, mais do que rejeitá-lo, afinal é apenas um jogo de palavras, não é? Não. Sabemos que não é. Não. Sabemos que não é. Esta definição traz em seu cerne toda a história africana, que Clint Eastwood retrata de modo impecável neste filme.

Jogando o jogo de palavras podemos perceber diferenças claras, denotadas, entre o futebol e o rúgbi: o primeiro é um "jogo de cavalheiros", o segundo, "jogo de selvagens". Ou seja, o primeiro é um jogo de "civilizados" e o outro, de "selvagens" tão somente. Curiosamente, ambos foram criados pela Inglaterra civilizada e branca, sendo ambos jogos de civilizados ou de cavalheiros em sua origem, o que nos faz pensar por que o primeiro é jogado por "selvagens". Para responder a esta inquietação devemos passar do jogo claro de denotação das palavras para o jogo obscuro da conotação e percebermos na popularização que o futebol alcançou entre as classes pobres e negras a sua passagem de civilizado a selvagem. Lembremos: quem disse esta frase foi o segurança branco de Mandela ao segurança negro dele.

A passagem do futebol de civilizado a selvagem não quer dizer que ele perdeu as "regras", "contratos" ou "fair play" estabelecidos entre seus praticantes e seus espectadores, apesar de que a evolução física dos jogadores tenha tornado ele hoje um esporte de contato, tanto de jogadores como de torcedores, diferente de antes em que a habilidade era reverenciada até pelos adversários e não odiada como ofensa com acontece hoje, apesar de ainda existirem aplausos. O que mudou não foram as regras, foram as pessoas que o jogavam. É o que podemos perceber no início do filme de modo marcante quando de um lado da estrada, por trás de uma cerca, treina a seleção nacional de rúgbi e, do outro lado da estrada, por trás de outra cerca, meninos jogam futebol. Uma cena emblemática que mostra de modo claro a segregação racial entre brancos e negros na África do Sul que se tornou conhecida mundialmente como apartheid e que se torna mais emblemática ainda quando Mandela passa em comitiva pela estrada e é saudado pelas crianças enquanto é hostilizado discretamente pelos jogadores ingleses.

Apesar do filme ser marcado pelo tom intenso da segregação racial, Clint Eastwood soube dar a ele a suavidade das palavras de Mandela, interpretado por Morgan Freeman que não deixa de ser intensa em seu tom ameno e joga como ninguém as palavras, talvez porque ficou muito tempo em silêncio, preso por 27 anos depois de ter sido condenado à morte junto com outros líderes "rebeldes" que eram contra o apartheid. E devemos ir além no jogo de palavras e observar como no filme os brancos são silenciados ou discretos em suas palavras enquanto os negros, agora no poder, falam, cantam e dançam. E como, tanto para negros como para brancos, as palavras são importantes em vários momentos da vida, faladas ou cantadas, como mostra Mandela ao capitão da seleção de rúgbi François Pienaar em uma conversa em que podemos perceber como também a humildade não escolhe cor, nem raça, de tão sublime que é.

Continuando o jogo de palavras é interessante pensar como o rúgbi é um "jogo de selvagens". Por que ele é jogado por cavalheiros, não é difícil de entender pelo que foi dito anteriormente, mas por que cavalheiros jogariam como "selvagens"? Isto é que parece estranho. Novamente, isto não quer dizer também que o rúgbi seja um jogo sem regras, contratos, sem fair play. Ele ainda é um jogo civilizado, com as devidas penalidades que a civilização impõe a cada ação desmedida que acontece entre as partes, por desmedida entendendo-se aqui uma agressão. Um jogo tão civilizado que, em nome desta civilidade, a seleção mantém um negro no time, apenas um, mas mantém, exaltado pelos demais e mostrando não simplesmente como o esporte pode unir as pessoas, mas como as pessoas podem se unir em suas diferenças e qualidades independente do esporte, futebol ou rúgbi. Como quando Mandela diz ao seu segurança negro, homem de confiança, sobre os novos seguranças brancos, antigos seguranças do ex-presidente sul-africano Frederik de Klerk, que eles tinham sido treinados pelos ingleses e era seu treinamento que importava a partir de então e não sua cor ou raça e quando fala antes aos funcionários brancos que já arrumavam suas coisas pensando que iam ser demitidos por sua cor.

Mas a questão permanece obscura no jogo de palavras "jogo de selvagens jogado por cavalheiros" na medida em que pensamos porque os brancos, civilizados, ingleses jogariam um jogo de selvagem sendo eles tão cavalheiros. A resposta poderia estar na origem anglo-saxônica da Inglaterra e sua selvageria resgatada com o rúgbi. Talvez este resgate coadune com o resgate de um tribalismo pungente no apartheid que separa aqueles que são de raças diferentes e justifica, por sua vez, os jogadores de futebol serem chamados de selvagens na medida em que são de uma raça diferente da dos brancos. Mas não impede que se pergunte porque eles podem ser selvagens em seu jogo, mesmo sendo na realidade cavalheiros, por que o termo selvagem no caso do futebol aparece como denegação dos negros e no rúgbi aparece apenas como uma simples negação, isto é, apenas uma contradição, sem ser uma ofensa da parte contrária. Enfim, qual a diferença entre a denegação dos negros como selvagens e a negação dos brancos como selvagens? Por que os negros são desvalorizados em sua civilidade como selvagens mesmo jogando um jogo de cavalheiros e os brancos ainda mantém sua civilidade mesmo jogando um jogo de selvagens?

Scrum
Para responder a estas perguntas, talvez devamos pensar nas cenas dos jogos da seleção sul-africana de rúgbi e a política que há nele não como regra, contrato ou fair play, e, sim, como jogo de força e de poder. Pensemos, por exemplo, no momento em que este jogo de força e poder se torna mais claro quando os times disputam a bola numa situação frequente do rúgbi chamada de scrum, em que um time em formação ordenada, com seus jogadores embarreirados, ombro a ombro, empurra o outro para ver quem consegue ganhar a bola atravessando a linha imaginária que ela estabelece como meio termo de um típico cabo de força.

Selvagem em sua origem, esta situação do rúgbi enfoca bem a sua primazia em relação ao futebol, apesar deste ter sido oficializado primeiro. A questão é simples: enquanto o futebol nega qualquer contato entre os jogadores adversários, tornando qualquer contato levemente excessivo numa penalidade, até uma simples batida de lateral mal realizada, o rúgbi tolera ao limite o contato físico como podemos perceber. E aqui a diferença mais clara que podemos perceber entre os selvagens e os civilizados: no rúgbi não se desvaloriza o corpo e o seu contato como no futebol e a força é de um grupo e não de um indivíduo, sempre possível de ser parado por um takle ou placagem do time adversário. O poder está em todos e não em um só como no futebol, que, ademais, valoriza o drible como seu ápice e é o ápice da ausência de contato ou de civilidade.

Ora, nada mais selvagem do que este tipo de contato, como podemos perceber em relação aos indígenas brasileiros em suas lutas corporais, ou na conhecida luta olímpica, que tem na modalidade do wrestling, a mais antiga forma de combate existente por ser corpo-a-corpo, isto é, sem a utilização de "armas". Em contrapartida, a ausência de contato seria sinal de uma pura civilidade calcada no individualismo, que valoriza a separação entre as pessoas, mas também entre as culturas e se torna, ironicamente, no fundamento de todo e qualquer apartheid. Uma separação calculada, medida pela razão em sua tentativa de evitar o conflito, defender-se dele, como o atacante no futebol que tenta a todo custo evitar seus adversários. Pelo contrário, no rúgbi o contato é inevitável e até requerido como forma de conhecer o adversário, como diz Mandela logo após sair da reunião em que os representante da liga nacional de rúgbi sul-africana tentavam mudar o nome, o hino e o uniforme do time por representar a opressão que sofreram dos brancos, ressaltando que durante a prisão estudou por muito tempo o comportamento dos brancos para conhecer melhor seu "inimigo" e ser melhor do que ele. Conhecimento, no caso, que quer dizer também, entrar em contato com aquilo que lhe é estranho, ou se lhe opõe, como no caso também de quando ele pede ou manda que os jogadores da seleção deem aula para as crianças carentes e diz, ao assistir a aula pela televisão: "Isto vale mais do que qualquer discurso.", referindo-se ao "contato" entre os jogadores e as crianças que vai muito além de uma aula. Ou ainda, quando os jogadores vão visitar a prisão onde Mandela ficou preso e, lá, o capitão da seleção François Pienaar relembra o poema Invictus (1785), do britânico William Ernest Henley que Mandela lhe escreveu de punho e falara dele quando encontrou o capitão a primeira vez.

 

Contato, por fim, que é demonstrado a cada cena com a aproximação entre negros e brancos à medida em que o time de rúgbi avança na copa e, principalmente, no jogo final contra o time da Nova Zelândia, o Old Blacks que, curiosamente, faz o rito Maori de combate antes da partida olhado com temor pelos Boks, de modo que por toda a parte este contato é replicado de uma forma ou de outra, entre os seguranças, entre as pessoas assistindo o jogo, entre alguns policiais e uma criança que busca ouvir o jogo no rádio do carro deles.

Chegamos ao fim do jogo de palavras no qual o filme Invictus nos enreda. Um jogo simples, mas que devemos jogar com os olhos bem aberto como se esperássemos a todo instante a jogada final. No filme, esta jogada é o aperto de mão entre Mandela e o capitão da seleção François Pienaar quando vai lhe entregar a taça de campeão e diz a ele: "Obrigado, pelo que fez por seu país." E o capitão lhe retribui as mesmas palavras, com uma ênfase maior: "Não, eu que agradeço pelo que fez ao país." A comunhão de palavras segue a comunhão das mãos. A força com que estas se apertam é uma força comum de 43 milhões de sul-africanos brancos e negros que vivenciam aquele momento, mais ou menos intensamente.

Donde ser selvagem no rúgbi é ser simplesmente isto: ser um time, uma nação, ter raça, como se diz, aquilo que sempre se pede no futebol e somente os campeões demonstram como os Invictus.

Anexo


Um comentário:

  1. Boa noite, Jean Pierre!

    Respeito sua opinião, mas acho que você não assite jogos de rugby.

    Creio que a comparação entre selvagens e cavalheiros é em relação a atitude dos jogadores dentro de campo.

    O rugby é um jogo muito mais bruto que o futebol, porém, seus jogadores são verdadeiros cavalheiros. O respeito e a educação imperam dentro de campo, tanto os jogadores entre si quanto com o árbitro. Não podemos dizer o mesmo em relação ao futebol.

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