O animal filosófico
De um modo geral,
admite-se que entre o homem e o animal há inúmeras diferenças.
Partindo da análise que Jacques Derrida faz sobre estas diferenças
em seu texto O animal que logo sou, pretende-se expor
aqui como entre homem e animal é produzido um a-partamento,
isto é, uma separação que é ao mesmo tempo uma ligação entre
ambos na qual o homem ao mesmo tempo que nega a si mesmo como animal
a partir de seu pensamento, também se afirma como tal a partir deste
mesmo pensamento. Neste sentido, podendo-se dizer que há um paradoxo
na relação do homem com o animal, pois, se ele é ainda considerado
um "animal", ele é um animal que pensa que não é
animal, e sim, um homem, um animal que pensa em
sua própria condição de animal e se diz homem, ou
seja, um animal filosófico.
Confira ao final uma apresentação em Prezi sobre este artigo.
Introdução
Em
dezembro de 2011, um vídeo postado no YouTube gerou uma revolta
entre os amantes dos animais e logo foi notícia em vários sites.
(Internautas
se revoltam contra enfermeira que espancou cachorro; ela se defende
no Twitter) Nele,
uma enfermeira aparecia mau tratando um cachorro da raça Yorkshire
ao jogá-lo contra a parede e aprisioná-lo debaixo de um balde em
meio a gritos e berros na frente de sua filha de três anos. O
cachorro não resistiu aos maus-tratos e morreu. Em sua defesa, a
enfermeira alegou que o cachorro era uma "peste".
Em
9 de fevereiro deste ano, uma outra notícia causou furor entre os
internautas, no caso, referente à condenação da adolescente
norte-americana Alyssa Bustamante, de 18 anos, à prisão
perpétua por ter matado sua vizinha de 9 anos estrangulada,
além de cortar-lhe a garganta e esfaquear-lhe. (Jovem
é condenada à prisão perpétua por morte de vizinha de 9 anos) Na
época, em 2009, quando o crime aconteceu, a adolescente alegou que
foi
porque “queria saber como se sentiria matando alguém”, o
que este sentimento foi descrito por ela em seu diário como "'muito
agradável'", dando detalhes de como foi no momento: “Eu
não sei como estou me sentindo. Foi incrível. Logo que passa a
sensação de ‘oh, meu Deus, eu não posso fazer isso’, é
realmente prazeroso. Agora estou tipo nervosa e tremendo. Tenho que
ir para a igreja agora... (risos)”
Uma outra outra notícia, esta menos enfatizada, também chamou a atenção por ser, no mínimo sui generis, já que, também nos Estados Unidos, Cinco orcas 'processam' parque aquático por escravidão. Obviamente, as orcas não deram entrada no processo, mas defensores delas, no caso, a organização PETA (Pessoas para um Tratamento Ético dos Animais, numa tradução literal). O motivo é estarem elas aprisionadas no principal parque aquático dos EUA e serem obrigadas a se apresentarem diariamente, o que, segundo seus defensores, pode ser considerado escravidão, pois, segundo pensam "'Escravidão não depende da espécie do escravo, assim como não depende de raça, gênero ou etnia. Coerção, degradação e submissão caracterizam escravidão, e essas orcas enfrentaram todos os três.'" Por sua vez, o advogado do parque alegou na corte americana citando a Constituição que "'As orcas e outros animais não foram incluídos no 'Nós, o povo' quando a Constituição foi adotada'".
Por fim, uma última notícia acontecida dias atrás chamou a atenção dos moradores da cidade de Queimadas, na Paraíba, mas a também a todos que tomem conhecimento dela, como chamou a minha atenção por seu título "Irmão dá estupro coletivo como 'presente' na PB". A reportagem se refere à prisão dos irmãos Eduardo e Luciano dos Santos Pereira que, segundo apurou a polícia, forjaram uma invasão de sua casa na festa de aniversário de Luciano, recém chegado do Rio de Janeiro, para que ambos estuprassem as mulheres convidadas para a festa, no caso, cinco mulheres. Além de estruparem-nas, eles ainda mataram duas delas, pois no momento do estupro caiu a venda de uma e ela reconheceu os irmãos e a outra ouviu seus nomes.
Ao
lermos estas notícias aqui resumidas, tão díspares entre si e
reunidas ao acaso, podemos nos perguntar: quem é o homem nelas?
E quem é o animal? O que define um e outro?
O que separa um do outro? E o que liga um ao outro?
E, assim, de pergunta em pergunta, começamos a pensar, ou filosofar,
sobre a nossa condição e a dos animais, ou ainda, da nossa condição
ao mesmo tempo de animais e de homens, nos animais
que logo somos, como diz Derrida. Um animal que, contudo, pensa
que não é um animal, que se diferencia dos animais por várias
características, cuja principal, inconteste, é porque pensa,
isto é, porque é um animal que pensa e, porque
pensa, não é animal. É um homem.
Se
pensarmos na relação do homem com o animal, portanto, logo, aparece
este paradoxo: o homem é o único animal que pensa e, porque pensa,
não é um animal. Isto é, o paradoxo de que o homem é um animal
que pensa que não é um animal, que se diz "animal", mas
que, no mesmo momento em que se diz ou se
nomeia como animal, deixa de ser animal, e se torna um
homem. De modo que, ao mesmo tempo em que o homem se separa do animal
e deixa de sê-lo a partir de seu
pensamento, podemos dizer que ele se liga por este mesmo pensamento
ao animal, considerando-se também ele um apesar das
diferenças.
O
homem, um animal político
A
relação entre o homem e o animal é tema recorrente na história da
filosofia e é a própria origem desta se considerarmos, como diz
Derrida, em seu texto O animal que logo sou,
que a história de modo geral é
uma autobiografia do homem, ou seja, é a narração,
falada ou escrita, dele sobre si mesmo, no caso, de sua diferença em
relação ao animal.
Segundo
esta história, uma frase que se tornou célebre e é repetida muitas
vezes como afirmação do homem autobiograficamente, sem que lhe seja
atribuída qualquer justificativa por quem a repete, foi dita e
escrita pelo filósofo grego Aristóteles em seu livro não menos
célebre A política, qual seja, a de
que "o homem, é, por natureza, um animal político (zoon
politikon)" (Livro I, parte 2, p. 146, Coleção Os
pensadores). Longe de consistir aqui uma necessidade o retorno aos
gregos e a este, em cujos ombros, para muitos, se apóia a filosofia
ocidental, é importante nos determos nele para considerarmos como
esta relação paradoxal entre o homem e o animal se constitui em sua
afirmação de modo singular, pois, nela, ao mesmo tempo que o homem
é nomeado e afirmado como animal, se afirma como animal, ele é
negado como tal, afirmando-se outrossim como político.
Retomarmos
esta afirmação de Aristóteles neste contexto da relação entre o
homem e o animal se faz aqui importante também por considerarmos que
ao ser ela analisada geralmente se enfoca a natureza política do
homem, seu "instinto social", como ele diz, negando-se uma
relação entre o homem e o animal no que diz respeito a esta
afirmação mesma. Mas, para melhor termos em vista esta relação é
preciso que retomemos o texto aristotélico em seu início de modo a
expor como ele a concebe.
Em
primeiro lugar, ao se referir ao homem como político, é
preciso notar que esta referência está diretamente relacionada à
constituição da pólis grega a qual se remete o
próprio nome político, isto é, a constituição da
Grécia como cidade-Estado "por natureza" ou "por
excelência", segundo Aristóteles, pois a "natureza"
é, para ele, "o produto final do processo de aperfeiçoamento"
seja de um "homem, cavalo, família ou qualquer outra coisa que
tenha existência." E, diz ele ainda, "o objetivo e a
finalidade de uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição".
(I, 2, p. 146) Neste sentido, se o homem é político por
natureza ou por excelência é porque a
cidade-Estado é o objetivo e a finalidade da natureza, o que ela
produz de melhor e mais excelente, cuja origem é, segundo
Aristóteles, a "união entre elementos que não podem subsistir
uns sem os outros", no caso, em primeiro lugar, o homem e a
mulher, cuja união é o primeiro ponto a se considerar no que diz
respeito à formação da cidade-Estado, pois "A família é a
associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades
diárias dos homens (...)". (I, 2, p. 145.) Supridas estas
necessidades, eis que surge uma outra associação que é a "aldeia"
que tem na associação entre famílias por hereditariedade e
patriarcalismo sua principal característica. Quando estas aldeias se
unem e se tornam "grande o bastante para ser auto-suficiente (ou
para estar perto disso), configura-se[enfim] a cidade, ou Estado -
que nasce para assegurar o viver e que, depois de
formada, é capaz de assegurar o viver bem." (I, 2,
p. 145. Grifo nosso.)
Com
a constituição da pólis grega, podemos então
compreender melhor a definição de homem de
Aristóteles enquanto político, ainda mais que,
acrescenta ele, aquele que não tem cidade nem Estado "ou é
muito mau ou é muito bom, ou sub-humano ou super-humano", "será
uma besta ou um deus", em ambos os caso, nunca um homem.
E mesmo que outros animais sejam "gregários" como as
abelhas, "ser gregário" como sinônimo de "ser
político", segundo ele, "o homem é um
animal mais político". O que este acréscimo
se deve, por natureza e excelência, por ser o homem "o único
animal que tem o dom da palavra", isto é, o único a ter o
"poder" de "expor o conveniente e o inconveniente,
assim como o justo e o injusto" em relação ao prazer e
a dor, "o único a ter noção do bem e do mal, da
justiça e da injustiça", enquanto o animal, se tem
uma voz esta lhe serve apenas para indicar
o prazer e a dor, "não mais que
isso". (I, 2, p. 146.)
O
homem tal como Aristóteles o concebe é, portanto, um ser
perfeito por
natureza e por excelência, por esta última devendo-se entender
também pela qualidade em sua ação, que tende sempre para
o bem ou
o sumo
bem, a
felicidade, como
diz no início de sua Ética
a Nicômaco.
E, assim, é um ser ético por ser
ele mesmo o
"justo meio" entre a falta (o muito mau, sub-humano, a
besta) e o excesso (o muito bom, o super-humano, deus) de qualidades,
de ações que visam o bem, a felicidade e a justiça, já que esta
"é o vínculo dos homens, nos Estados (...) é o princípio da
ordem numa sociedade política". (I, 2, p. 147.) O que é esta
sociedade política em sua justiça que torna o homem o "melhor
dos animais", sem a qual, "apartado da
lei e da justiça, é o pior de todos" (Grifo nosso.)
Ao
retomar a ética de Aristóteles, neste ponto, lembro da colocação
de um aluno que tendo em conta o conceito de mediania ou meio-termo
relacionado a uma auto-suficiência, isto é, aquilo que
é suficiente para si, escreveu numa prova que a
diferença entre os homens e os animais é que estes
são auto-suficientes, visam sempre o meio-termo, pois,
por exemplo, nunca comem mais do que o necessário, diferentemente do
homem que sempre come mais ou menos do que o necessário e nunca
atingem o meio-termo. Apesar de não poder dizer que ele estava certo
no que diz respeito a Aristóteles, pois ele inverteu o que é
próprio ao homem, segundo este, isto é, visar o meio-termo em seu
raciocínio sobre o excesso e a falta, enquanto o animal, por não
raciocinar não visa isto, obviamente, não pude deixar de considerar
a agudez de seu pensamento. E chegar a concordar com ele, pois,
enquanto as ações humanas tendem sempre para o bem e à felicidade,
mas nunca os alcançam ou os alcançam dificilmente ao fim da vida,
pode-se dizer que os animais, mesmo sem terem isto em vista em suas
ações, "vivem bem", sem falta ou excesso, como expressou
certa vez Walt Whitman em sua Canção de mim mesmo (Song of
Myself):
Eu penso que poderia retornar e viver com animais, tão plácidos e autocontidos; eu paro e me ponho a observá-los longamente. Eles não se exaurem e gemem sobre a sua condição; eles não se deitam despertos no escuro e choram pelos seus pecados; eles não me deixam nauseado discutindo o seu dever perante Deus. Nenhum deles é insatisfeito, nenhum enlouquecido pela mania de possuir coisas; nenhum se ajoelha para o outro, nem para os que viveram há milhares de anos; nenhum deles é respeitável ou infeliz em todo o mundo.
(Fonte: http://www.citador.pt/textos/nenhum-animal-e-insatisfeito-walt-whitman. Acessado em 14 de fevereiro de 2012.)
A vida em
sociedade leva Aristóteles a considerar uma outra diferença entre
os homens e os animais na medida em que considera esta relação em
analogia à relação entre alma e corpo,
isto porque assim como a alma deve governar o corpo
e este se deixar governar por ela, também o homem deve governar os
animais os quais devem, em contrapartida, deixarem ser governados
pelo homem. A maneira como a alma governa o corpo, e consequentemente
como o homem governa os animais, é, segundo outra analogia de
Aristóteles, a maneira de governar do senhor em
relação ao escravo. Primeiramente este governo é
por preceito despótico, como o de que: "Uma criatura
viva consiste, em primeiro lugar, de alma e corpo, e destes
dois elementos o primeiro é por natureza o governante e o segundo, o
governado." Contudo, a este preceito se relacionam os preceitos
constitucionais das "regras estabelecidas",
"reais" ou "racionais" do intelecto ao
reger os "apetites" e da mente ao
reger as "paixões" a partir dos quais ele conclui sua
polêmica defesa da escravidão do corpo e dos animais duplamente,
por natureza despótica e por excelência intelectual e racional:
"Portanto, onde houver essa mesma diferença que há entre alma
e corpo, ou entre homens e animais (...) a casta inferior será
escrava por natureza, e é melhor para os inferiores estar sob
domínio de um senhor." (I, 5, p. 151) E, assevera ele, "Sem
dúvida, o uso dos escravos e dos animais domésticos não é muito
diferente, uma vez que em ambos o corpo atende às necessidades da
vida." (I, 5, p. 151) Tanto o animal como o escravo são,
portanto, "instrumentos" na mão do senhor que domina
seus "corpos" talhados pela própria natureza para servir,
pois, ao escravo fez o corpo "forte" e ao senhor o corpo
"esguio", e ao homem equipou com "braços", para
serem usados com "inteligência e bondade, mas também para os
piores objetivos", enquanto ao animal, não.
Derrida, o
animal autobiográfico
Uma longa tradição
se constituiu a partir destes pensamentos de Aristóteles os quais
podemos comprovar, de certo modo, ao retomar as reportagens acima,
bem como ao considerar o animal autobiográfico a
que se refere Derrida, que é o próprio homem, mas também Derrida,
como se referem a ele.
Em primeiro lugar,
no que diz respeito às reportagens, podemos dizer que sob todas
padece o pensamento aristotélico a justificar as ações humanas em
relação aos animais, mas também em relação a si mesmos. No
caso da enfermeira, ao chamar seu cachorro de "peste", ela
o considerava inferior a
si, que é "tranquila,
casada, amo meu marido, meu filho, meus cachorrinhos. Enfermeira por
amor. Muuuito feliz". Já
quanto a adolescente, o fato dela manifestar o prazer em
ter matado sua vizinha remete diretamente ao "poder da palavra"
a que se refere Aristóteles em expor o que é conveniente ou não,
prazeroso ou doloroso, diferentemente dos animais e da menina de 9
anos que teriam apenas uma voz para identificar isto. Assim como no
caso das orcas que, dotadas apenas de suas vozes sem palavras,
precisam das palavras de outros para se defenderem da "escravidão"
muito bem defendida pelo advogado, diria Aristóteles, ao se referir
ao "Nós, o povo" da Constituição. Pois se elas são
escravizadas é justamente por uma questão política do homem, dele
se constituir como governante, mandante,
pelo direito da palavra e pelo direito da força, ou pela força
da lei.
Impossibilitadas de qualquer participação política, o melhor
seria justamente deixarem
se governar pelos homens, servirem a ele como instrumentos, no caso,
de diversão. Do contrário, o resultado seria, pode-se dizer, o que
acontece no filme de animação Bee
Movie, no
qual uma abelha ao
falar num tribunal humano em defesa de todas as abelhas contra a
escravidão e exploração do mel que elas produzem pelos homens, e
conseguir o direito de ter devolvido todo o mel tirado pelos homens,
faz com que todas as abelhas deixem de produzir o mel, por já se ter
em excesso, mas também deixarem de colher o pólen e fazer a
polinização das plantas que, logo, começam todas a morrer. Donde a
necessidade natural delas, por sua vez, serem exploradas e
escravizadas para que a ordem natural se mantenha e elas mesmas
tenham um fim ou objetivo na natureza. O que seria uma clara
demonstração do que Aristóteles diz. Por fim, o estupro coletivo
dado de presente por um irmão a outro configura aquilo que
Aristóteles diz acerca da excelência do homem, a qual somente pode
se realizar na medida em que ele é político,
isto é, submetido às leis e
à justiça da
ordem social, sendo o pior de todos os animais quando é apartado
dela. "É por isso que, diz Aristóteles, se o ser humano não
for excelente, será o mais perverso e selvagem dos animais, o mais
repleto de luxúria e de gula." (I, 2, p. 146)
Tomando
em conta isto, é preciso compreender que, para Aristóteles, o
homem, mesmo sendo político,
ele não deixa de ser animal. O que isto quer dizer que ele pode,
mesmo sendo senhor em sua alma, intelecto e mente racional, vir a ser
também escravo, mau, sub-humano, besta, dominado pelo corpo e
pelas paixões. E que se a diferença entre o homem e os animais se
faz pela palavra é
porque sob esta repousa o pensamento do
homem no que diz respeito à sua animalidade mesma, ao animal
que logo ele é, como
diz Derrida, e que não quer ser. Neste sentido, ao se dizer homem,
ele também e diz animal, ainda que negativamente, em sua
autobiografia, como aquilo que não quer ser confessado, mas se
confessa em sua confissão mesma de ser um homem.
No
que diz respeito aos fatos aludidos pela reportagem e a justificativa
que se lhes possa dar a partir de Aristóteles, para o bem ou para o
mal, um sentimento que surge em nós, além de uma justa
indignação, é o de uma vergonha, esta vergonha
de ser um homem, como diz Deleuze se referindo a Primo Levi, mas
também como diz Derrida ao se referir à sua vergonha
diante de um gato, de estar "nu" diante dele,
de um animal. Vergonha que se dobra quando nos paramos para pensar no
porque desta vergonha tendo mesmo vergonha de ter vergonha.
Isto porque podemos nos perguntar: por que sentir vergonha de estar
nu diante de um animal? Por acaso o animal sabe que estamos nu? Ele
nos vê nu? O que significa estar nu?
A palavra nu?
A
questão da nudez abre, neste sentido, uma outra
diferença entre os homens e os animais, pois, segundo Derrida (2002,
p. 17), "Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum
animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do
homem, um dos 'próprios' do homem." Ademais, poderíamos
perguntar, por que ele se vestiria? Qual o motivo mesmo de se vestir?
Do homem se vestir? Quando se tornou necessário a ele se vestir? E
os animais, não se vestindo, estariam eles nus?
Segundo
Derrida, se, por um lado, o vestir-se é um dos próprios do
homem, o que isto implica saber-se nu, por outro lado, para muitos, o
próprio do animal é a nudez, "estarem nus [porém]
sem o saber". Isto é, não saberem o que significa a nudez, nem
tão pouco terem "consciência do bem e do mal" a ela
relacionado, condição mesma do vestir-se do homem, como humano.
Todavia, sem saber desta condição de "nudez", em última
instância também ela não existiria para o animal, nem "na
natureza", pois, diz Derrida (2002, p. 17) "Não existe
nudez 'na natureza'. Existe apenas o sentimento, o afeto, a
experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez."
O
que significa então estar nu? Saber-se nu? De onde vem a vergonha da
nudez? Ou a sem vergonhice dela? Do sentimento
de pudor humano ao qual ela está diretamente
relacionada, um pudor que seria do ver-se e saber-se nu, isto é, do
ter o "sexo" descoberto. Pois, diz Derrida (2002, p. 18):
"O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para
esconder seu sexo. [E] Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez,
ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. E
saber-se, seria saber-se pudico." Ser homem, assim, é
ter consciência de sua nudez, mas, sobretudo, tendo consciência
dela, se envergonhar por ela e se vestir, em última instância,
vestir o seu sexo, símbolo de toda vergonha ou falta dela, no caso,
dos animais, os quais podemos chamar, todavia, sem ofender como sem
vergonhas por natureza.
A
vergonha por estar nu diante de um animal parece, assim,
injustificada, tendo em vista que o animal, sem ter consciência da
nudez não nos veria nu, tão pouco teria a maldade ou bondade em seu
olhar quando se põe diante de nossa nudez. Um olhar que seria "sem
fundo, como os olhos do outro" no qual não nos vemos e que,
segundo Derrida, nunca foi colocado em questão, isto é, nunca se
buscou pensar o olhar do animal sobre nós, a "experiência
do animal que vê", apenas do "animal" que vemos a
partir do olhar próprio ao homem em sua maldade ou bondade, nudez ou
pudor, desde sua Gênese. No
caso, uma "criatura viva" cujo nome já depõe contra si,
como uma alma(ânima) mal,
que ao ser chamado animal já
é negado e denegado em sua existência na palavra mesma
que o nomeia. Negado e denegado, ademais, pelo poder
de nomear, um
poder que sujeita os animais pela palavra ou
pelo nome,
em nome
de Deus, pois
"Mais precisamente ele[Deus] criou o homem à sua
semelhança para
que o
homem sujeite,
dome, domine, adestre, ou domestique os
animais nascidos antes deles, e assente sua autoridade sobre eles."
(DERRIDA, p. 37, 2002)
Diante
deste poder do homem em nomeá-lo, o animal é, então, emudecido,
condenado a uma "profunda tristeza", a de não-poder falar,
já que, como diz Derrida, se referindo a Benjamin em Sobre
a linguagem em geral e a linguagem humana:
A tristeza, o luto, a melancolia (Traurigkeit) da natureza ou da animalidade nasceriam, assim, segundo Benjamin, desse mutismo, é certo (Stummheit, Sprachlosigkeit), mas também, por isso mesmo, deste ferimento sem nome: ter recebido o nome. [Pois] Ao se encontrar privado de linguagem perde-se o poder de nomear, de se nomear, em verdade de responder em seu nome." (DERRIDA, p. 41, 2002)
Desde o Gênese,
portanto, desde o início dos tempos, o animal é condenado a
obedecer o homem a ser inferior a ele, contudo, diz Derrida, nunca na
história esta sujeição foi tão avassaladora como nos dois últimos
séculos quando a pesca, a caça, a domesticação, o adestramento e
o uso da energia animal como forma tradicional de tratamento dele foi
subvertido ao extremo
pela criação e adestramento a uma escala demográfica sem nenhuma comparação com o passado, pela experimentação genética, pela industrialização do que se pode chamar a produção alimentar da carne animal, pela inseminação artificial maciça, pelas manipulações cada vez mais audaciosas do genoma, pela redução do animal não apenas à produção e reprodução seperestimada (...) de carne alimentícia mas a todas as outras finalidades a serviço de um certo estar e suposto bem-estar humano do homem. (DERRIDA, p. 51, 2002)
Tal sujeição,
pode-se dizer que é uma violência? Uma crueldade?
Para responder a estas, segundo Derrida, é preciso pensar como o fez
Bentham a respeito do animal, não querendo saber se ele pensa,
raciocina ou fala, se é dotado destes poderes e
mesmo de todo tipo de poder, pois isto, seria
perguntar se ele é um homem, o que, de pronto, já se sabe que ele
não é. "A questão prévia e decisiva seria
a de saber se os animais podem sofrer." Em outras
palavras, eles podem sofrer tal como nós? Mesmo que não
saibam pensar, raciocinar, falar, nomear o seu sofrimento?
É neste ponto, podemos dizer, que toda a separação pretendida do
homem em relação ao animal a partir de seu pensamento se reverte e
torna-se uma ligação com ele, que toda a diferença se reduz, pois
Aí reside, como a maneira mais radical de pensar a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compaixão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não-poder[isto é, o sofrer], a possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e a vulnerabilidade dessa angústia. (DERRIDA, p. 55, 2002)
Se
não podemos dizer com uma "certeza indubitável" como a
do cogito ergo sum cartesiano que o animal sofre,
contudo, diz Derrida, tão pouco podemos negar isto. Isto é inegável
mesmo, tendo em vista que "Ninguém pode negar o sofrimento, o
medo ou o pânico, o terror ou o pavor que podem se apossar de certos
animais e que nós, os homens podemos testemunhar." (DERRIDA, p.
56, 2002) Não podemos negar o sofrimento do animal. Mesmo mudo ele
nos mostra que sofre. E não podemos deixar de sentir em nós este
sofrimento, de sofrer pelo animal, com o animal, como animal. Um
sofrimento inominável, o do animal, nosso com ele, como
ele, é, assim, o que nos liga ao animal, que nos faz ser
animal e se ver como animal, pelos olhos
do animal, que ao nos olhar em seu sofrer nos faz pensar em nós
mesmos, no animal que logo somos, este animal que
pensa que não é animal, mas que sofre como todo
animal, este "animal racional" que se
chama filósofo, o animal filosófico.
Conclusão
Pensar
a diferença entre o homem e o animal, neste
sentido, é pensar ao mesmo tempo aquilo que separa e une o
homem ao animal, isto é, pensar um a-partamento entre
eles. Como principais diferenças, separações e ligações
ou a-partamentos, entre o homem e o animal estão
o pensamento e a linguagem diretamente
relacionada a ele por meio dos quais o homem se diferencia dos
animais ou propriamente como animal, pois, mesmo dotado de pensamento
e de linguagem, ele continua sendo um animal, no caso, um "animal
racional" ou um "animal que fala palavras". Deste
modo, podemos concluir que ao mesmo tempo em que o pensamento e a
linguagem separam o homem dos animais, como animal, ele também
aproxima o homem do animal ao se ver também como um animal.
Anexo
Nenhum comentário: