O animal filosófico

julho 17, 2012

De um modo geral, admite-se que entre o homem e o animal há inúmeras diferenças. Partindo da análise que Jacques Derrida faz sobre estas diferenças em seu texto O animal que logo sou, pretende-se expor aqui como entre homem e animal é produzido um a-partamento, isto é, uma separação que é ao mesmo tempo uma ligação entre ambos na qual o homem ao mesmo tempo que nega a si mesmo como animal a partir de seu pensamento, também se afirma como tal a partir deste mesmo pensamento. Neste sentido, podendo-se dizer que há um paradoxo na relação do homem com o animal, pois, se ele é ainda considerado um "animal", ele é um animal que pensa que não é animal, e sim, um homem, um animal que pensa em sua própria condição de animal e se diz homem, ou seja, um animal filosófico.


Confira ao final uma apresentação em Prezi sobre este artigo.

Introdução

Em dezembro de 2011, um vídeo postado no YouTube gerou uma revolta entre os amantes dos animais e logo foi notícia em vários sites. (Internautas se revoltam contra enfermeira que espancou cachorro; ela se defende no Twitter) Nele, uma enfermeira aparecia mau tratando um cachorro da raça Yorkshire ao jogá-lo contra a parede e aprisioná-lo debaixo de um balde em meio a gritos e berros na frente de sua filha de três anos. O cachorro não resistiu aos maus-tratos e morreu. Em sua defesa, a enfermeira alegou que o cachorro era uma "peste".

Em 9 de fevereiro deste ano, uma outra notícia causou furor entre os internautas, no caso, referente à condenação  da adolescente norte-americana Alyssa Bustamante, de 18 anos, à prisão perpétua por ter matado sua vizinha de 9 anos estrangulada, além de cortar-lhe a garganta e esfaquear-lhe. (Jovem é condenada à prisão perpétua por morte de vizinha de 9 anosNa época, em 2009, quando o crime aconteceu, a adolescente alegou que foi porque “queria saber como se sentiria matando alguém”, o que este sentimento foi descrito por ela em seu diário como "'muito agradável'", dando detalhes de como foi no momento:  “Eu não sei como estou me sentindo. Foi incrível. Logo que passa a sensação de ‘oh, meu Deus, eu não posso fazer isso’, é realmente prazeroso. Agora estou tipo nervosa e tremendo. Tenho que ir para a igreja agora... (risos)”

Uma outra outra notícia, esta menos enfatizada, também chamou a atenção por ser, no mínimo sui generis, já que, também nos Estados Unidos, Cinco orcas 'processam' parque aquático por escravidão. Obviamente, as orcas  não deram entrada no processo, mas defensores delas, no caso, a organização PETA (Pessoas para um Tratamento Ético dos Animais, numa tradução literal). O motivo é estarem elas aprisionadas no principal parque aquático dos EUA e serem obrigadas a se apresentarem diariamente, o que, segundo seus defensores, pode ser considerado escravidão, pois, segundo pensam "'Escravidão não depende da espécie do escravo, assim como não depende de raça, gênero ou etnia. Coerção, degradação e submissão caracterizam escravidão, e essas orcas enfrentaram todos os três.'" Por sua vez, o advogado do parque alegou na corte americana citando a Constituição que "'As orcas e outros animais não foram incluídos no 'Nós, o povo' quando a Constituição foi adotada'".

Por fim, uma última notícia acontecida dias atrás chamou a atenção dos moradores da cidade de Queimadas, na Paraíba, mas a também a todos que tomem conhecimento dela, como chamou a minha atenção por seu título "Irmão dá estupro coletivo como 'presente' na PB". A reportagem se refere à prisão dos irmãos Eduardo e Luciano dos Santos Pereira que, segundo apurou a polícia, forjaram uma invasão de sua casa na festa de aniversário de Luciano, recém chegado do Rio de Janeiro, para que ambos estuprassem as mulheres convidadas para a festa, no caso, cinco mulheres. Além de estruparem-nas, eles ainda mataram duas delas, pois no momento do estupro caiu a venda de uma e ela reconheceu os irmãos e a outra ouviu seus nomes.

Ao lermos estas notícias aqui resumidas, tão díspares entre si e reunidas ao acaso, podemos nos perguntar: quem é o homem nelas? E quem é o animal? O que define um e outro? O que separa um do outro? E o que liga um ao outro? E, assim, de pergunta em pergunta, começamos a pensar, ou filosofar, sobre a nossa condição e a dos animais, ou ainda, da nossa condição ao mesmo tempo de animais e de homens, nos animais que logo somos, como diz Derrida. Um animal que, contudo, pensa que não é um animal, que se diferencia dos animais por várias características, cuja principal, inconteste, é porque pensa, isto é, porque é um animal que pensa e, porque pensa, não é animal. É um homem.

Se pensarmos na relação do homem com o animal, portanto, logo, aparece este paradoxo: o homem é o único animal que pensa e, porque pensa, não é um animal. Isto é, o paradoxo de que o homem é um animal que pensa que não é um animal, que se diz "animal", mas que, no mesmo momento em que se diz ou se nomeia como animal, deixa de ser animal, e se torna um homem. De modo que, ao mesmo tempo em que o homem se separa do animal e deixa de sê-lo a partir de seu pensamento, podemos dizer que ele se liga por este mesmo pensamento ao animal, considerando-se também ele um apesar das diferenças.

O homem, um animal político

A relação entre o homem e o animal é tema recorrente na história da filosofia e é a própria origem desta se considerarmos, como diz Derrida, em seu texto O animal que logo sou, que a história de modo geral é uma autobiografia do homem, ou seja, é a narração, falada ou escrita, dele sobre si mesmo, no caso, de sua diferença em relação ao animal.

Segundo esta história, uma frase que se tornou célebre e é repetida muitas vezes como afirmação do homem autobiograficamente, sem que lhe seja atribuída qualquer justificativa por quem a repete, foi dita e escrita pelo filósofo grego Aristóteles em seu livro não menos célebre A políticaqual seja, a de que "o homem, é, por natureza, um animal político (zoon politikon)" (Livro I, parte 2, p. 146, Coleção Os pensadores). Longe de consistir aqui uma necessidade o retorno aos gregos e a este, em cujos ombros, para muitos, se apóia a filosofia ocidental, é importante nos determos nele para considerarmos como esta relação paradoxal entre o homem e o animal se constitui em sua afirmação de modo singular, pois, nela, ao mesmo tempo que o homem é nomeado e afirmado como animal, se afirma como animal, ele é negado como tal, afirmando-se outrossim como político.

Retomarmos esta afirmação de Aristóteles neste contexto da relação entre o homem e o animal se faz aqui importante também por considerarmos que ao ser ela analisada geralmente se enfoca a natureza política do homem, seu "instinto social", como ele diz, negando-se uma relação entre o homem e o animal no que diz respeito a esta afirmação mesma. Mas, para melhor termos em vista esta relação é preciso que retomemos o texto aristotélico em seu início de modo a expor como ele a concebe.

Em primeiro lugar, ao se referir ao homem como político, é preciso notar que esta referência está diretamente relacionada à constituição da pólis grega a qual se remete o próprio nome político, isto é, a constituição da Grécia como cidade-Estado "por natureza" ou "por excelência", segundo Aristóteles, pois a "natureza" é, para ele, "o produto final do processo de aperfeiçoamento" seja de um "homem, cavalo, família ou qualquer outra coisa que tenha existência." E, diz ele ainda, "o objetivo e a finalidade de uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição". (I, 2, p. 146) Neste sentido, se o homem é político por natureza ou por excelência é porque a cidade-Estado é o objetivo e a finalidade da natureza, o que ela produz de melhor e mais excelente, cuja origem é, segundo Aristóteles, a "união entre elementos que não podem subsistir uns sem os outros", no caso, em primeiro lugar, o homem e a mulher, cuja união é o primeiro ponto a se considerar no que diz respeito à formação da cidade-Estado, pois "A família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades diárias dos homens (...)". (I, 2, p. 145.) Supridas estas necessidades, eis que surge uma outra associação que é a "aldeia" que tem na associação entre famílias por hereditariedade e patriarcalismo sua principal característica. Quando estas aldeias se unem e se tornam "grande o bastante para ser auto-suficiente (ou para estar perto disso), configura-se[enfim] a cidade, ou Estado - que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de assegurar o viver bem." (I, 2, p. 145. Grifo nosso.)

Com a constituição da pólis grega, podemos então compreender melhor a definição de homem de Aristóteles enquanto político, ainda mais que, acrescenta ele, aquele que não tem cidade nem Estado "ou é muito mau ou é muito bom, ou sub-humano ou super-humano", "será uma besta ou um deus", em ambos os caso, nunca um homem. E mesmo que outros animais sejam "gregários" como as abelhas, "ser gregário" como sinônimo de "ser político", segundo ele, "o homem é um animal mais político". O que este acréscimo se deve, por natureza e excelência, por ser o homem "o único animal que tem o dom da palavra", isto é, o único a ter o "poder" de "expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e o injusto" em relação ao prazer e a dor, "o único a ter noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça", enquanto o animal, se tem uma voz esta lhe serve apenas para indicar o prazer e a dor, "não mais que isso". (I, 2, p. 146.)

O homem tal como Aristóteles o concebe é, portanto, um ser perfeito por natureza e por excelência, por esta última devendo-se entender também pela qualidade em sua ação, que tende sempre para o bem ou o sumo bem, a felicidade, como diz no início de sua Ética a Nicômaco. E, assim, é um ser ético por ser ele mesmo o "justo meio" entre a falta (o muito mau, sub-humano, a besta) e o excesso (o muito bom, o super-humano, deus) de qualidades, de ações que visam o bem, a felicidade e a justiça, já que esta "é o vínculo dos homens, nos Estados (...) é o princípio da ordem numa sociedade política". (I, 2, p. 147.) O que é esta sociedade política em sua justiça que torna o homem o "melhor dos animais", sem a qual, "apartado da lei e da justiça, é o pior de todos" (Grifo nosso.)

Ao retomar a ética de Aristóteles, neste ponto, lembro da colocação de um aluno que tendo em conta o conceito de mediania ou meio-termo relacionado a uma auto-suficiência, isto é, aquilo que é suficiente para si, escreveu numa prova que a diferença entre os homens e os animais é que estes são auto-suficientes, visam sempre o meio-termo, pois, por exemplo, nunca comem mais do que o necessário, diferentemente do homem que sempre come mais ou menos do que o necessário e nunca atingem o meio-termo. Apesar de não poder dizer que ele estava certo no que diz respeito a Aristóteles, pois ele inverteu o que é próprio ao homem, segundo este, isto é, visar o meio-termo em seu raciocínio sobre o excesso e a falta, enquanto o animal, por não raciocinar não visa isto, obviamente, não pude deixar de considerar a agudez de seu pensamento. E chegar a concordar com ele, pois, enquanto as ações humanas tendem sempre para o bem e à felicidade, mas nunca os alcançam ou os alcançam dificilmente ao fim da vida, pode-se dizer que os animais, mesmo sem terem isto em vista em suas ações, "vivem bem", sem falta ou excesso, como expressou certa vez Walt Whitman em sua Canção de mim mesmo (Song of Myself):
Eu penso que poderia retornar e viver com animais, tão plácidos e autocontidos; eu paro e me ponho a observá-los longamente. Eles não se exaurem e gemem sobre a sua condição; eles não se deitam despertos no escuro e choram pelos seus pecados; eles não me deixam nauseado discutindo o seu dever perante Deus. Nenhum deles é insatisfeito, nenhum enlouquecido pela mania de possuir coisas; nenhum se ajoelha para o outro, nem para os que viveram há milhares de anos; nenhum deles é respeitável ou infeliz em todo o mundo.
(Fonte: http://www.citador.pt/textos/nenhum-animal-e-insatisfeito-walt-whitman. Acessado em 14 de fevereiro de 2012.)

A vida em sociedade leva Aristóteles a considerar uma outra diferença entre os homens e os animais na medida em que considera esta relação em analogia à relação entre alma e corpo, isto porque assim como a alma deve governar o corpo e este se deixar governar por ela, também o homem deve governar os animais os quais devem, em contrapartida, deixarem ser governados pelo homem. A maneira como a alma governa o corpo, e consequentemente como o homem governa os animais, é, segundo outra analogia de Aristóteles, a maneira de governar do senhor em relação ao escravo. Primeiramente este governo é por preceito despótico, como o de que: "Uma criatura viva consiste, em primeiro lugar, de alma e corpo, e destes dois elementos o primeiro é por natureza o governante e o segundo, o governado." Contudo, a este preceito se relacionam os preceitos constitucionais das "regras estabelecidas", "reais" ou "racionais" do intelecto ao reger os "apetites" e da mente ao reger as "paixões" a partir dos quais ele conclui sua polêmica defesa da escravidão do corpo e dos animais duplamente, por natureza despótica e por excelência intelectual e racional: "Portanto, onde houver essa mesma diferença que há entre alma e corpo, ou entre homens e animais (...) a casta inferior será escrava por natureza, e é melhor para os inferiores estar sob domínio de um senhor." (I, 5, p. 151) E, assevera ele, "Sem dúvida, o uso dos escravos e dos animais domésticos não é muito diferente, uma vez que em ambos o corpo atende às necessidades da vida." (I, 5, p. 151) Tanto o animal como o escravo são, portanto, "instrumentos" na mão do senhor que domina seus "corpos" talhados pela própria natureza para servir, pois, ao escravo fez o corpo "forte" e ao senhor o corpo "esguio", e ao homem equipou com "braços", para serem usados com "inteligência e bondade, mas também para os piores objetivos", enquanto ao animal, não.

Derrida, o animal autobiográfico

Uma longa tradição se constituiu a partir destes pensamentos de Aristóteles os quais podemos comprovar, de certo modo, ao retomar as reportagens acima, bem como ao considerar o animal autobiográfico a que se refere Derrida, que é o próprio homem, mas também Derrida, como se referem a ele.

Em primeiro lugar, no que diz respeito às reportagens, podemos dizer que sob todas padece o pensamento aristotélico a justificar as ações humanas em relação aos animais, mas também em relação a si mesmos. No caso da enfermeira, ao chamar seu cachorro de "peste", ela o considerava inferior a si, que é "tranquila, casada, amo meu marido, meu filho, meus cachorrinhos. Enfermeira por amor. Muuuito feliz". Já quanto a adolescente, o fato dela manifestar o prazer em ter matado sua vizinha remete diretamente ao "poder da palavra" a que se refere Aristóteles em expor o que é conveniente ou não, prazeroso ou doloroso, diferentemente dos animais e da menina de 9 anos que teriam apenas uma voz para identificar isto. Assim como no caso das orcas que, dotadas apenas de suas vozes sem palavras, precisam das palavras de outros para se defenderem da "escravidão" muito bem defendida pelo advogado, diria Aristóteles, ao se referir ao "Nós, o povo" da Constituição. Pois se elas são escravizadas é justamente por uma questão política do homem, dele se constituir como governantemandante, pelo direito da palavra e pelo direito da força, ou pela força da lei. Impossibilitadas de qualquer participação política, o melhor seria justamente deixarem se governar pelos homens, servirem a ele como instrumentos, no caso, de diversão. Do contrário, o resultado seria, pode-se dizer, o que acontece no filme de animação Bee Movie, no qual uma abelha ao falar num tribunal humano em defesa de todas as abelhas contra a escravidão e exploração do mel que elas produzem pelos homens, e conseguir o direito de ter devolvido todo o mel tirado pelos homens, faz com que todas as abelhas deixem de produzir o mel, por já se ter em excesso, mas também deixarem de colher o pólen e fazer a polinização das plantas que, logo, começam todas a morrer. Donde a necessidade natural delas, por sua vez, serem exploradas e escravizadas para que a ordem natural se mantenha e elas mesmas tenham um fim ou objetivo na natureza. O que seria uma clara demonstração do que Aristóteles diz. Por fim, o estupro coletivo dado de presente por um irmão a outro configura aquilo que Aristóteles diz acerca da excelência do homem, a qual somente pode se realizar na medida em que ele é político, isto é, submetido às leis e à justiça da ordem social, sendo o pior de todos os animais quando é apartado dela. "É por isso que, diz Aristóteles, se o ser humano não for excelente, será o mais perverso e selvagem dos animais, o mais repleto de luxúria e de gula." (I, 2, p. 146)

Tomando em conta isto, é preciso compreender que, para Aristóteles, o homem, mesmo sendo político, ele não deixa de ser animal. O que isto quer dizer que ele pode, mesmo sendo senhor em sua alma, intelecto e mente racional, vir a ser também escravo, mau, sub-humano, besta, dominado pelo corpo e pelas paixões. E que se a diferença entre o homem e os animais se faz pela palavra é porque sob esta repousa o pensamento do homem no que diz respeito à sua animalidade mesma, ao animal que logo ele é, como diz Derrida, e que não quer ser. Neste sentido, ao se dizer homem, ele também e diz animal, ainda que negativamente, em sua autobiografia, como aquilo que não quer ser confessado, mas se confessa em sua confissão mesma de ser um homem.

No que diz respeito aos fatos aludidos pela reportagem e a justificativa que se lhes possa dar a partir de Aristóteles, para o bem ou para o mal, um sentimento que surge em nós, além de uma justa indignação, é o de uma vergonha, esta vergonha de ser um homem, como diz Deleuze se referindo a Primo Levi, mas também como diz Derrida ao se referir à sua vergonha diante de um gato, de estar "nu" diante dele, de um animal. Vergonha que se dobra quando nos paramos para pensar no porque desta vergonha tendo mesmo vergonha de ter vergonha. Isto porque podemos nos perguntar: por que sentir vergonha de estar nu diante de um animal? Por acaso o animal sabe que estamos nu? Ele nos  nu? O que significa estar nu? A palavra nu?

A questão da nudez abre, neste sentido, uma outra diferença entre os homens e os animais, pois, segundo Derrida (2002, p. 17), "Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do homem, um dos 'próprios' do homem." Ademais, poderíamos perguntar, por que ele se vestiria? Qual o motivo mesmo de se vestir? Do homem se vestir? Quando se tornou necessário a ele se vestir? E os animais, não se vestindo, estariam eles nus?
Segundo Derrida, se, por um lado, o vestir-se é um dos próprios do homem, o que isto implica saber-se nu, por outro lado, para muitos, o próprio do animal é a nudez, "estarem nus [porém] sem o saber". Isto é, não saberem o que significa a nudez, nem tão pouco terem "consciência do bem e do mal" a ela relacionado, condição mesma do vestir-se do homem, como humano. Todavia, sem saber desta condição de "nudez", em última instância também ela não existiria para o animal, nem "na natureza", pois, diz Derrida (2002, p. 17) "Não existe nudez 'na natureza'. Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez."

O que significa então estar nu? Saber-se nu? De onde vem a vergonha da nudez? Ou a sem vergonhice dela? Do sentimento de pudor humano ao qual ela está diretamente relacionada, um pudor que seria do ver-se e saber-se nu, isto é, do ter o "sexo" descoberto. Pois, diz Derrida (2002, p. 18): "O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. [E] Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. E saber-se, seria saber-se pudico." Ser homem, assim, é ter consciência de sua nudez, mas, sobretudo, tendo consciência dela, se envergonhar por ela e se vestir, em última instância, vestir o seu sexo, símbolo de toda vergonha ou falta dela, no caso, dos animais, os quais podemos chamar, todavia, sem ofender como sem vergonhas por natureza.

A vergonha por estar nu diante de um animal parece, assim, injustificada, tendo em vista que o animal, sem ter consciência da nudez não nos veria nu, tão pouco teria a maldade ou bondade em seu olhar quando se põe diante de nossa nudez. Um olhar que seria "sem fundo, como os olhos do outro" no qual não nos vemos e que, segundo Derrida, nunca foi colocado em questão, isto é, nunca se buscou pensar  o olhar do animal sobre nós, a "experiência do animal que vê", apenas do "animal" que vemos a partir do olhar próprio ao homem em sua maldade ou bondade, nudez ou pudor, desde sua Gênese. No caso, uma "criatura viva" cujo nome já depõe contra si, como uma alma(ânimamal, que ao ser chamado animal já é negado e denegado em sua existência na palavra mesma que o nomeia. Negado e denegado, ademais, pelo poder de nomear, um poder que sujeita os animais pela palavra ou pelo nome, em nome de Deus, pois "Mais precisamente ele[Deus] criou o homem à sua semelhança para que o homem sujeite, dome, domine, adestre, ou domestique os animais nascidos antes deles, e assente sua autoridade sobre eles." (DERRIDA, p. 37, 2002)

Diante deste poder do homem em nomeá-lo, o animal é, então, emudecido, condenado a uma "profunda tristeza", a de não-poder falar, já que, como diz Derrida, se referindo a Benjamin em Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana
A tristeza, o luto, a melancolia (Traurigkeit) da natureza ou da animalidade nasceriam, assim, segundo Benjamin, desse mutismo, é certo (Stummheit, Sprachlosigkeit), mas também, por isso mesmo, deste ferimento sem nome: ter recebido o nome. [Pois] Ao se encontrar privado de linguagem perde-se o poder de nomear, de se nomear, em verdade de responder em seu nome." (DERRIDA, p. 41, 2002)

Desde o Gênese, portanto, desde o início dos tempos, o animal é condenado a obedecer o homem a ser inferior a ele, contudo, diz Derrida, nunca na história esta sujeição foi tão avassaladora como nos dois últimos séculos quando a pesca, a caça, a domesticação, o adestramento e o uso da energia animal como forma tradicional de tratamento dele foi subvertido ao extremo
pela criação e adestramento a uma escala demográfica sem nenhuma comparação com o passado, pela experimentação genética, pela industrialização do que se pode chamar a produção alimentar da carne animal, pela inseminação artificial maciça, pelas manipulações cada vez mais audaciosas do genoma, pela redução do animal não apenas à produção e reprodução seperestimada (...) de carne alimentícia mas a todas as outras finalidades a serviço de um certo estar e suposto bem-estar humano do  homem. (DERRIDA, p. 51, 2002)

Tal sujeição, pode-se dizer que é uma violência? Uma crueldade? Para responder a estas, segundo Derrida, é preciso pensar como o fez Bentham a respeito do animal, não querendo saber se ele pensa, raciocina ou fala, se é dotado destes poderes e mesmo de todo tipo de poder, pois isto, seria perguntar se ele é um homem, o que, de pronto, já se sabe que ele não é. "A questão prévia e decisiva seria a de saber se os animais podem sofrer." Em outras palavras, eles podem sofrer tal como nós? Mesmo que não saibam pensar, raciocinar, falar, nomear o seu sofrimento? É neste ponto, podemos dizer, que toda a separação pretendida do homem em relação ao animal a partir de seu pensamento se reverte e torna-se uma ligação com ele, que toda a diferença se reduz, pois
Aí reside, como a maneira mais radical de pensar a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compaixão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não-poder[isto é, o sofrer], a possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e a vulnerabilidade dessa angústia. (DERRIDA, p. 55, 2002)

Se não podemos dizer com uma "certeza indubitável" como a do cogito ergo sum cartesiano que o animal sofre, contudo, diz Derrida, tão pouco podemos negar isto. Isto é inegável mesmo, tendo em vista que "Ninguém pode negar o sofrimento, o medo ou o pânico, o terror ou o pavor que podem se apossar de certos animais e que nós, os homens podemos testemunhar." (DERRIDA, p. 56, 2002) Não podemos negar o sofrimento do animal. Mesmo mudo ele nos mostra que sofre. E não podemos deixar de sentir em nós este sofrimento, de sofrer pelo animal, com o animal, como animal. Um sofrimento inominável, o do animal, nosso com ele, como ele, é, assim, o que nos liga ao animal, que nos faz ser animal e se ver como animal, pelos olhos do animal, que ao nos olhar em seu sofrer nos faz pensar em nós mesmos, no animal que logo somos, este animal que pensa que não é animal, mas que sofre como todo animal, este "animal racional" que se chama filósofo, o animal filosófico.

Conclusão

Pensar a diferença entre o homem e o animal, neste sentido, é pensar ao mesmo tempo aquilo que separa e une o homem ao animal, isto é, pensar um a-partamento entre eles. Como principais diferenças, separações e ligações ou a-partamentos, entre o homem e o animal estão o pensamento e a linguagem diretamente relacionada a ele por meio dos quais o homem se diferencia dos animais ou propriamente como animal, pois, mesmo dotado de pensamento e de linguagem, ele continua sendo um animal, no caso, um "animal racional" ou um "animal que fala palavras". Deste modo, podemos concluir que ao mesmo tempo em que o pensamento e a linguagem separam o homem dos animais, como animal, ele também aproxima o homem do animal ao se ver também como um animal. 

Anexo



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