Presos à realidade
No fim do capítulo V da obra A República, de Platão, Sócrates dialogando com Glauco, pergunta a este: "Então, denominaremos filósofos apenas aqueles que em tudo se prendem à realidade?" Ao que Glauco responde: "Sem sombra de dúvida."
Ao ler o artigo Os territórios de exceção de Fortaleza, de Ricardo Moura, jornalista, cientista social e mestre em Políticas Públicas e Sociedade, sobre o alto índice de morte de adolescentes e a invisibilidade destas mortes perante o poder público e a mídia que as tornam algo natural, não pude deixar de pensar nestas palavras de Sócrates, menos por sua referência aos filósofos, do que por sua constatação indireta de que estes "em tudo se prendem à realidade". Mais especificamente por de modo mais indireto ainda, poder se ler em tal pensamento algo que em outra obra de Platão, Fedon, ele exporá mais detidamente, de que a realidade é uma prisão e que a morte é senão sua libertação.
Tal pensamento, apesar de extremamente depressivo, alerta para algo que não nos damos conta, mas que, no texto de Ricardo, é possível percebermos muito bem, no caso, a presença da realidade como algo do qual não podemos escapar, no caso dos jovens de periferia em estado de exceção, de uma realidade que é um "campo" no qual a violência é sentida e admitida como algo natural cujo fim inevitável é a morte. Uma morte não sentida porque, vivente ou sobrevivente em tal campo, o território de exceção, os adolescente podem aí serem deixados à sua própria sorte por uma biopolítica, que para fazer viver uns, deixa morrer outros, os homo sacer, como ele diz, fazendo referência a um conceito de Agamben, que poderíamos traduzir por um conceito literário de Jorge Amado, o de capitães da areia, pois, como diz em sua obra homônima:
“Esta foto tem o clima perfeito do livro Capitães da Areia, de Jorge amado. considero um retrato autêntico da Bahia.” Christian Cravo, Revista da Cultura, p. 39, julho de 2011.
Diante desta vida da rua, os jovens capitães da areia são como estrangeiros em sua própria terra, desprovidos da lei que não os pode incriminar nem tão pouco consegue lhes ajudar. Responsáveis por si mesmos como se fossem adultos, sem ser, eles permanecem presos à realidade invisível aos olhos de todos, mas não os seus, sem exceção. E cuja morte não é uma libertação, como pensava Sócrates, mas uma abreviação de uma realidade para muitos inevitável."Desde pequenos na arriscada vida da rua, os Capitães da Areia eram como homens, eram iguaisa homens. Toda a diferença estava no tamanho. (...) Quando outras crianças só se preocupavamcom brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentosque só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens, na sua vida de misériae de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças. Porque o que faz a criança é o ambientede casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua.E tiveram sempre que cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si."
Nenhum comentário: